“Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falta eu mesmo e essa lacuna é tudo”.
Dom Casmurro de Machado de Assis cap. II terceiro parágrafo: fala de Bentinho. (que poderia ser de Roberto)
Introdução:
Quando vejo um filme procuro perceber o impacto, o que ele provoca em mim, o que desperta, o que posso sonhar a partir dele. Quais sobressaltos e medos que em me vejo tomada, o que me desestabiliza, o que me emociona, o que ele alcança que emoções desperta e me faz sonhar, imaginar. É disto que quero falar para que sonhando os meus sonhos e brincando com eles, vocês possam trazer os seus e com isto surgir um exercício novo de leitura cinematográfica, agora ampliada. Cada expectador diante da tela é dono do “seu filme”, e faz sua leitura e suas expansões dentro da sua singularidade.
A obra do diretor e autor do enredo do filme é uma expansão dele, da sua visão do mundo, da sua existência. Alguns escritores dizem que de uma forma ou outra foram “salvos” – do vazio, da loucura, da angustia da ausência de sentido – por seus escritos. (Virginia Woolf, Clarice Lispector, Hilda Hilst).
O filme.
O filme “Um conto Chinês”, de 2011, dirigido por Sebastián Boresztein, nos apresenta como o inusitado interfere em nossas vidas, e como cada um de nós lida com os acontecimentos subsequentes, o que é para nós psicanalistas o ponto central. O que vemos neste conto é como muitas vezes algo que vem de maneira estranha em nossas vidas pode trazer uma mudança radical. Aparentemente simples poderíamos dizer que se trata de dois personagens, Roberto e Jun, onde observamos duas circunstâncias das condições humanas visto sob o prisma psicodinâmico: a perda de uma relação significativa (Jun) e a ausência de um vínculo básico, (Roberto), ambas relacionadas com luto, retraimento e regressão.
Na Argentina, quando se usa a expressão “un conto chino”, se quer dizer que alguém conta uma mentira deslavada ou delira, como entre nós seria “o conto do vigário” ou um embuste.
É nessa fronteira estranha de insólita verdade que se move o filme protagonizado por Ricardo Darin, o grande ator argentino, conhecido no mundo todo graças a seu talento em filmes de sucesso como: O filho da noiva, O segredo dos teus olhos (ganhou o Oscar), O clube da lua, Nove rainhas.
Em “Um conto chinês”, Darin faz o papel de um solitário e metódico dono de uma lojinha de ferragens em Buenos Aires, em um lado decadente da cidade. Mal-humorado, zangado, deprimido, cheio de raiva; homem maduro, ele vive sua vida insossa, contando obsessivamente parafusos, para ter mais uma razão para reclamar do mundo que o engana.
Coleciona notícias bizarras com histórias de mortes absurdas que saem como notícias nos jornais que ele recorta e cola, para provar a si mesmo que tudo é aleatório, sem sentido, nessa vida.
A única certeza é a morte. E, por isso, tem um altar em casa, presidido pelo retrato da mãe, morta quando ele nasceu. Na velha “cristaleira” coleciona os presentes, oferendas que compra para a mãe morta: bibelôs de vidro, pássaros com asas de cristal, frágeis como ele.
O pai morreu também em circunstâncias trágicas, quando ele tinha 19 anos. Morre ao vê-lo no jornal em foto. Ele está fardado, combatendo na guerra das Malvinas. O pai era imigrante italiano, de onde saiu para evitar participar da guerra. Assim Roberto acumula culpas infantis inconfessáveis e inconscientes.
Leva flores para os túmulos de seus únicos entes queridos todos os sábados. Amados e também detestados porque o impedem de viver. Roberto vocifera contra o mundo, impotente.
Veterano da Guerra das Malvinas, na qual a Argentina declarou guerra à Inglaterra e foi derrotado sem piedade, Roberto esconde muitas mágoas em seu coração. Pensa nelas cada vez que vai ao aeroporto ver os aviões pousando e decolando, enquanto almoça sentado em uma cadeira, com comida em cima do capô de sua velha Fiat. Hábito relatado por um amigo gaúcho, comum também em Porto Alegre.
Justamente por estar ali, é que Roberto vai encontrar Jun (Ignácio Huang, ator chinês que vive na Argentina).
O órfão argentino fareja de longe o órfão chinês.
Assaltado e jogado para fora do taxi sem falar uma palavra de castelhano, o jovem chinesinho vai ser amparado por Roberto, à sua própria revelia e contragosto.
Há uma compulsão em ajudar o desconhecido, já que Roberto não ajuda a si mesmo a viver uma vida melhor. Nisso está incluído a simpática Mari, (Muriel Santa Ana) que o adora com certa timidez e vê em Roberto “sofrimento e nobreza”, como ela escreve na carta que enviou para ele e ele não respondeu.
Um conto chinês é uma comédia com elementos de humor negro e se baseia numa história verídica, por mais incrível que isso possa parecer.
Roberto irá se abrir para a humanidade através de um autêntico conto chinês.
O diretor e roteirista Sebastian Borenzstein, toca o filme com delicadeza, fazendo com que o espectador deduza quase tudo do vínculo entre o argentino que não fala chinês e o chinês que não fala castelhano, através da mímica, das expressões faciais e linguagem corporal dos ótimos atores. Sebástian Boresztein lê a noticia da vaca e decide começar por ela seu próximo filme. Escreve para o filme, 18 versões até chegar à definitiva. Privilegia temas comuns a todas as culturas – solidão, solidariedade, amor, abandono. Contém também algo muito argentino como a guerra das Malvinas, este absurdo de enfrentamento com a Grã-Bretanha, absurdo tão grande, no dizer de Boresztein como uma vaca cair do céu…
Exercícios psicanalíticos sobre o filme:
O conceito de fenômenos curativos (healing phenomena) se relaciona com conceito de indivíduo são e o viver criativo. Freud considera o individuo são aquele que é capaz de amar e trabalhar. Winnicott acrescenta alem destes a capacidade de viver criativamente.
No texto sobre: Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão em um setting especializado (Metapsychological and clinical aspects of regression within the Psycho-analytical set up. D.W.Winnicott escreve (1954, pg. 283-284):
Em outras palavras, a psicose está intimamente relacionada à saúde, na qual incontáveis situações de fracasso ambiental são congeladas, sendo, porém, atingidas e descongeladas pelos vários fenômenos curativos da vida cotidiana, como amizades, cuidados especiais dispensados durante uma doença física, poesia, etc.
Healing phenomena, tem o sentido de cicatrizar, portanto um processo natural. To Cure significa curar. To heal, tem o sentido de cicatrizar. Somos muito dedicados ao estudo das doenças, mas nem tanto ao da saúde.
O ser humano busca dar conta de seu sofrimento através da capacidade de estabelecer um viver criativo. Proveniente ou da herança – nature, ou do cuidado – nurture. Este potencial para o desenvolvimento psíquico, Winnicott chamou de verdadeiro self. É necessário através da cisão, criar um falso self adaptativo. (Massud Khan). Este verdadeiro self, protegido pelo falso selfadaptativo, defesa organizada, contem um precipitado de possibilidades de se defender para fazer frente às experiências traumáticas.
Frente a eventos traumáticos os fenômenos curativos (proponho chamar de cicatrizantes) são postos em movimento, nos indivíduos sãos ou com viver criativo.
“Nem toda ausência de doença significa saúde” Winnicott.
Temos registros de experiências positivas e negativas. As experiências positivas[1] permitem o viver criativo e o gesto espontâneo. Individuo são é aquele que acrescenta o viver criativo. O viver criativo permite que se utilize dos fenômenos curativos e de experiências positivas. Ex. vida cultural, amizades, memórias de cuidados, poesia.
Roberto vive recluso na casa dos pais, mas dela não cuida, parece deixá-la morrer aos poucos. Não dá abertura para que ninguém entre em sua vida. Cuida dos objetos da mãe como viva fosse e depois de perder o pai aos 19 anos deu continuidade ao trabalho dele na loja de ferragens. A perda do pai ocorre, em uma circunstância que reforça a ferida anterior da perda da mãe. A perda da mãe, ao Roberto nascer, é vivida como ausência e a do pai como perda. Roberto parece viver a mesma vida dos pais, de forma rotineira e igual, dormindo sistematicamente na mesma hora, tomando sempre da mesma forma seu café da manhã. Coleciona fatos inusitados relacionados com mortes absurdas, como julga ter sido a dos pais. Também é uma pessoa correta e justa, constantemente lutando contra o logro, por se sentir logrado logo de saída, ou sente-se um eterno enganado.[2] Conta os parafusos e pregos que vende, sempre achando que na caixa contém menor quantidade que nela é indicada. Vive sozinho, isolado, almoçando fora da porta da casa, sobre o carro, assistindo a chegada dos aviões. [3]Tem mesmo um avião como enfeite do seu carro. Roberto não dá abertura a um possível romance em sua vida. É um típico solitário cheio de manias e métodos, que cultua a memória dos pais indo ao cemitério todo o sábado levar flores, e mantendo uma “cristaleira” com bibelôs de vidro, objetos que a mãe apreciava. Roberto é um veterano da guerra das Malvinas, onde matou e viu muitos morrerem. Na sua volta encontra o pai já morto, e as circunstâncias da guerra impediram que ele fosse antes notificado. Encontra como objeto do pai, um recorte de jornal colado em um caderno, com ele militarizado na foto. É este caderno que ele dá continuidade com suas colagens, obsessivamente. São defesas obsessivas que ele organiza para lidar com as perdas.
Quando encontra fatos que seleciona obsessivamente nos jornais, “fatos inusitados”, vive através deles, como num sonho com características de pesadelo, compondo com a própria imagem, ações de vítima ou de agressor, sempre fatais.
O inusitado acontece mais uma vez na vida de Roberto. Desta vez em forma de vida e não de morte, embora trazido pela morte. Jun entra na vida de Roberto enquanto ele relaxava vendo aviões chegarem, imaginando situações de reencontro, esperando alguém chegar. Seria a mãe? Neste momento um taxi despeja Jun, também um órfão, que acabara de perder sua noiva em condições trágicas e inusitadas. Não sabemos quando Jun perdeu seus familiares de origem, mas parece não ter sido tão precoce como Roberto, o que nos indica sua disposição para a vida. A perda da noiva acontece a Jun, por circunstâncias de uma vaca ter desabado do céu sobre um pequeno barco pesqueiro. Ele então, sem saber uma única palavra de castelhano, munido de esperança e com o endereço do tio, único parente, escrito na pele do seu braço, chega até Roberto, sendo literalmente “cuspido” para fora de um taxi. Cai na calçada, desamparado. Esta cena lembra um parto, o bebê sendo expelido, e necessitando imediato acolhimento pela mãe. Lembrei de que na maternidade há também um nome em uma pulseira no braço do bebê para vinculá-lo a qual mãe ele pertence. Jun tem na “pele”, uma inscrição de esperança e de vida.
Roberto, traumatizado por tanta morte em sua vida e portador de uma carência fundamental, uma falta afetiva básica, um vazio interior, resultado de uma relação insuficiente ou inexistente com a mãe, retraiu-se e defensivamente evita o vínculo. Fica por isto mesmo arredio e solitário.[4] Este vínculo primário, mãe-bebê, é básico para que se estabeleça e desenvolva um sentimento de segurança, e capacidade de viver situações de dependência e confiança. É necessário para poder viver relações amorosas.[5] Jun, enlutado, porém esperançoso, busca uma nova relação. Jun perdeu alguém para a morte, corporificada em uma vaca, ironicamente um dos símbolos da vida.
No encontro de Roberto com Jun, vão ocorrendo mudanças, transformações. Podemos ir acompanhando o sofrimento de Roberto, o desconforto de se relacionar, o esforço que faz a língua diferente que falam e não se entendem a irritação de Roberto, sua ambivalência, tornando este contato muito difícil. Roberto para ajudar Jun, e também no desejo de ver-se livre dele logo, vai até o consulado procurar ajuda. Observa o papel absurdo do Estado que não protege os cidadãos, que não os ampara, tratando-os com profundo descaso. Deseja entregar Jun ao abandono uma vez que não encontra receptividade com as autoridades, mas também aparece de forma ambivalente um desejo de poder ajudar Jun na sua descoberta do paradeiro do tio. Deseja encontrar uma saída satisfatória para Jun e para ele mesmo, para sua vida. Tenta chegar até Jun, ajudá-lo. Percebe nele uma pessoa perdida, sozinha, órfã e se identifica com ele. Auxiliar Jun faz com que Roberto se aproxime dele mesmo na sua solidão. No entanto esta relação de Roberto com Jun é árdua pelo menos para Roberto. Percebe claramente suas limitações. Observa atentamente a carta que Mari havia lhe encaminhado e que ele não abriu ou sequer respondeu e a lê. Responde pessoalmente a Mari: “sua carta não chegou”… E realmente não havia chegado até ele. Estava bloqueado, impedido ao contato. Mari entende a linguagem de Jun, mesmo não falando chinês. Ela se coloca em seu lugar, se identifica com ele.
Certa vez Winnicott atendeu uma família da Dinamarca e as duas crianças ficaram com a certeza de que ele falava dinamarquês, apesar dos pais afirmarem que ele nunca falou uma palavra daquele idioma. (Mello Filho, 2003).
Roberto consegue estabelecer um vínculo com Jun, mas para mantê-lo e fortalecê-lo necessita uma intermediação amorosa; Mari faz esta parte. E o que ela oferece? Alimento. Convida para um jantar depois oferece comida chinesa. Ela é uma pessoa que ordenha vaca. Que produz leite. Calor afetivo. Que percebe o valor das fotos e da beleza do momento presente. Ela que intermedía, proporcionando um entregador de comida chinês que faz a tradução do que Jun fala. (uma transicionalidade). Roberto vai aos poucos recuperando uma família. Roberto e Mari, com o “filho” Jun, que então não fica mais órfão. Jun começa “arrumar” a vida de Roberto. (jogar fora o que não serve mais… o lixo… Embeleza a parede e o muro) arruma a “sua casa” interna também. Traz algo de novo, limpo. Começa o descongelamento. O fator cicatrizante na vida de Roberto, proporcionado pela vivência afetiva que também o desconcerta. Jun na sua arrumação quebra os objetos de culto do passado. Objetos fetiche. Ele os substitui por Objetos transicionais.[6] A vida de Roberto vira e gira, de ponta cabeça, roda, como no inicio do filme onde surge a loja de ferragens de ponta cabeça e na posição normal. Há desconforto. Mudança. Jun quebra os objetos – com isto, há uma maravilhosa metáfora, da quebra de algumas de suas defesas, com dor, ódio, repúdio. Manda Jun embora… Manda a princípio embora suas possibilidades de elaboração, desenvolvimento. Mas, já havia experimentado algo novo, e isto o seduz para trazê-lo de volta à vida… Recupera ou constrói uma vida nova, largando o objeto fetiche – de morte, imobilizador. Fica daí para frente mais vivo. Luta e se defende da opressão. Agride um policial corrupto, ajudado por Jun que o defende. Ficam unidos na luta. Jun e Roberto não estão mais órfãos. Têm um ao outro. Há esperança de que a família seja encontrada, a de Jun, e a de Roberto seja iniciada, pela sua própria iniciativa. Ligada ao hoje ao momento presente e ao futuro. Não mais ao passado – às mortes e a destrutividade…
Quando Roberto desiste de “se livrar de Jun”, de mandá-lo embora, mesmo que temporariamente, o que ocorre após o episódio de Jun tê-lo defendido com um ato de solidariedade, há o inicio de um diálogo entre os dois. Roberto chama o interprete, (entregador de pizza). Começa a haver um desejo de conhecer a língua e acontecimentos da vida um do outro. Interpretar e interpretação significa mediação, intermediação. Roberto explica a Jun porque ele se interessa por fatos inusitados. Surge uma conversa sobre as “tragédias” da vida. Roberto relata as suas: guerra das Malvinas, aviões de guerra, perda do pai, foto dele no jornal italiano assinado pelo pai, que ao vê-lo nesta noite, morre. É neste momento que parece que Roberto desiste ainda mais da vida de relação. Jun relata para Roberto a perda da noiva, ocasionada pela queda inusitada de uma vaca sobre ela. Segue que Roberto, pasmo, tomado de pavor e espanto[7] diz: “não pode ser; não pode ser; nada tem sentido”. Jun contesta: “tudo tem sentido”. Neste momento Roberto não se sente sozinho. Rompe a muralha; simbolicamente a “muralha da china”, vista no pôster da embaixada. Com o espanto se abre para a possibilidade de usar o pensamento. Dispensa o ritual obsessivo. Deixa de controlar o tempo, no relógio, bebe, dorme e é acordado pelo telefonema. Encontrou-se o tio.
Roberto volta para casa e vê o desenho que Jun havia feito no seu muro: a paisagem com uma vaca. Lê agora a mensagem. Desperta para o que ela comunica: procure por Mari, este é o campo dela, onde tem uma vaca, símbolo da vida, do calor afetivo, da parceria amorosa.
No início do filme vemos a imagem da mãe sozinha no porta-retratos, de Roberto sozinho na sua luta/luto; no final é enfocada a foto do pai e mãe juntos sob a lápide no cemitério, e também na apresentação do staff de filmagem como última cena, com os nomes de todos os participantes em espanhol e em chinês, (bilíngue) configurando uma parceria.
Referências:
Bezerra, B. e Ortega, F. (2007) Winnicott e seus interlocutores. Nas pegadas de Balint- Reflexões psicanalíticas de D.W. Winnicott . Rio de Janeiro: Relume Dumará.
Bonaminio, V. (2010) Nas margens de mundos infinitos. Rio de Janeiro: Imago.
Bonaminio, V. (2010) Nas margens de mundos infinitos. Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S.(1910) A significação antitética das palavras primitivas. In S. Freud, Obras completas (Vol. XI). Rio de Janeiro. Imago.
Freud, S. (1911) Os dois princípios do funcionamento mental. In S. Freud, Obras completas (vol. XII). Rio de Janeiro: Imago.
Green, A. (1980) Narcisismo de Vida Narcisismo de Morte. São Paulo: Ed. Escuta.
Phillips, A. (2006) Adam Phillips/ Winnicott. Rio de Janeiro: Ideias e Letras
Mello Filho, J. (2003) O Ser e o Viver: uma visão da obra de Winnicott. São Paulo: Casa do psicólogo.
Winnicott, D.W. (1956) Os bebês e suas mães. Rio de Janeiro: Imago.
Winnicott, D.W. (1958) Da pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.
Winnicott, D.W. (1971) O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
Vera Marieta Fischer
Psicanalista Membro Associado da FEBRAPSI, da SBPRJ e Membro fundador e Membro Associado do GPC.
Tel: (041) 326-22657
e-mail: fischer.veramarieta@gmail.com
Resumo
O filme “Um conto chinês” foi utilizado neste trabalho para um exercício como se fosse um caso clínico. Para este intento consideramos algumas reflexões teóricas e clínicas, da obra de Winnicott além daquela de outros autores como Freud, Balint e Green.
Vemos neste conto como muitas vezes algo que vem de maneira estranha em nossas vidas pode trazer uma mudança radical. O foco é basicamente sobre dois personagens, onde observamos duas circunstâncias das condições humanas vistas sob o prisma psicodinâmico: a perda de uma relação significativa e a ausência de um vínculo básico, ambas relacionadas com luto, retraimento e regressão.
Foram abordados conceitos de fenômenos curativos, objetos transicionais e objetos fetiche, pares antitéticos, falta básica, clínica do vazio, comunicação e não comunicação, retraimento e regressão, objetos parciais, ambiente facilitador e outros.
O ponto fundamental é a importância da construção de vínculos intersubjetivos para que os intrassubjetivos vicejem e se estabeleçam.
Palavras chave: psicanálise e cinema, fatores curativos (healing phenomena), transicionalidade, luto, retraimento e regressão.
[1] Experiências positivas ocorrem em um ambiente facilitador. É um ambiente que permite que se desenvolva a confiabilidade oferecendo acolhimento. Favorece a regressão e diminui o retraimento. Roberto permite que Jun cuide dele, da sua casa, arrume seu café da manhã. Defenda-o do policial corrupto. (defende-o de seu superego rígido e cruel).
[2] A palavra lograr tem o sentido de conseguir e também o de ser logrado, enganado. Freud (vol. X da Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1925 p.141) descreve em A significação antitética das palavras primitivas, que está fora de dúvida que numa língua, pelo menos havia um grande número de palavras que designavam, ao mesmo tempo, uma coisa e seu oposto. Deveríamos, portanto, nos inclinar a fazer provir à inversão tanto de som como do significado um fator de origem mais profunda.
[3] Na regressão há a dependência, no retraimento há a independência patológica. (Winnicott, 1965). Roberto era pessoa retraída. Não tinha condições de ser espontâneo e dependente de circunstâncias normais da vida.
[4] Entre os conceitos teóricos de enorme utilidade na clínica se encontram: o da série branca, alucinação negativa, psicose branca e luto branco, fenômenos pertencentes ao que se poderia chamar a clinica do vazio ou a clinica do negativo. André Green os descreve como: “um desinvestimento massivo, radical e temporário, que deixa rastros no inconsciente em forma de ‘buracos psíquicos’, que serão preenchidos por reinvestimentos, expressões de destrutividade, liberada por esta debilidade do investimento libidinal erótico”. Destaca ainda que as manifestações de ódio, assim como os processos de reparação consecutivos são manifestações secundárias em relação a esse desinvestimento central do objeto primário materno. Desde este vértice A. Green sugere uma abordagem técnica na qual não se privilegie a interpretação do ódio, como poderia ser nas depressões narcisistas, tendo muito presente que a angustia que está em jogo é a aniquilação do Eu. Seu trabalho “A mãe morta” influenciou toda uma época e estimulou ao estudo da relação do bebê com sua mãe. O que caracteriza estas depressões é que se produzem na presença do objeto. A Mãe absorvida por um luto, desinveste brutalmente seu filho, que vive esta situação como uma catástrofe.
[5] O conceito de M. Balint, (1935) de falta básica, (basic fault) se refere a privações sofridas muito precocemente que deixam uma lacuna na mente. Descreve também a possibilidade de um novo começo (new beginning), um novo ciclo que constitui um mecanismo essencial no processo que ele chamou de cura.
[6] O objeto transicional facilita a passagem para a vida, para a comunicação e para o encontro. Representa o objeto amado na sua ausência. É uma passagem para a representação simbólica, isto é para poder permanecer só sem ficar solitário. Roberto não constrói a morte simbólica que é a possibilidade de permitir que o outro vá embora.
Objetos fetiche são os bibelôs de vidro, objetos que fazem Roberto se sentir mais vivo. São objetos parciais, (M. Klein) que ao se quebrarem podem, se este fato se der em um contexto de amadurecimento, se transformar em “um todo” (total), que o libera da imobilidade e o integra socialmente. São as diferenças entre objeto transicional e objeto fetiche: O primeiro ligado ao desenvolvimento e ao processo maturacional, o segundo ligado a patologia. O primeiro próprio das primeiras etapas do desenvolvimento, o segundo as etapas posteriores do desenvolvimento. O primeiro voltado para a integração e o segundo a parte substitui o todo. No primeiro predomina a ansiedade de separação, no segundo a de castração. O primeiro geralmente é objeto macio, e o que importa é o seu uso, no segundo são objetos consistentes como couro ou vidro. O primeiro tem como destino ser progressivamente desinvestido e relegado ao limbo e o segundo tem permanência e constância. O primeiro está ligado ao surgimento das primeiras experiências não-eu e aos símbolos e o segundo ao objeto concreto, “a coisa em si”.
[7] Em suas consultas com crianças, Winnicott descobriu que o momento significativo era aquele que o paciente se surpreendia. De fato, o desenvolvimento da capacidade de se surpreender consigo mesmo, pode-se dizer, era uma das metas da análise para ele. Uma liberação da submissão.