O alcance do trabalho psicanalítico com adolescentes. Possíveis modificações no setting.
[1]Vera Marieta Fischer
Apresento nesta comunicação um pouco da minha experiência do dia a dia no trabalho dentro da sala de análise e de como vim adaptando a técnica de trabalho, em especial com pacientes graves e com adolescentes. Trago um pouco do que fui apreendendo das leituras, supervisões e de grupos de estudos sobre a obra de Winnicott e de quanto ele me ajudou neste sentido. Observo que com pacientes graves e com muitos adolescentes é fundamental poder proporcionar um ambiente facilitador, um setting adaptado, para que o processo terapêutico se estabeleça e se mantenha.
Uma adolescente de 16 anos me escreve:
Não sei se a senhora lembra-se de mim, é a Lúcia, a senhora me atendeu no segundo semestre do ano passado e, bem, já passou um tempo e resolvi mandar notícias.
Estou trabalhando desde fevereiro, parei o violino e quero começar francês esse semestre.
Estou com vários gatinhos em casa, três adultas e oito filhotes.
Minha mãe falou ontem sobre a senhora, disse que uma vez ela falou contigo e você tinha pedido para receber notícias e então, cá estou.
Coincidentemente, ontem, eu estava navegando por uma das minhas páginas favoritas de toda a internet: a Wikipédia.
No meio de todas aquelas páginas, acabei caindo, justo aonde, na página da síndrome da personalidade limítrofe, o transtorno com o qual me identifiquei quando me consultava com a senhora.
Li o artigo, achei muito bom, e surpresa, acabei me identificando mais e mais com o transtorno borderline.
O artigo fala sobre a “etapa inicial” do transtorno no começo da adolescência, que tem como sintomas a “má adaptação social,… conflitos no ambiente familiar”. Bem, lá pelos meus 11 anos, eu simplesmente não tinha amigos, tinha acabado de mudar de escola e não falava com ninguém de lá, pelos 12/13 anos, brigava muito com a minha mãe, quando fui morar com o meu pai, eu e minha mãe tínhamos parado de conversar, ficamos uns meses sem se ver e tudo mais.
Outra parte do artigo que me chamou muito a atenção, foi de como os borderlines “tem a capacidade de esconder o transtorno”, como escondem com maestria seus sentimentos, mas uma vez isso se provou verdade. Minha mãe quando falou sobre você ontem disse “mandar notícias, falar como você “tá ótima”. Bem, não é que eu não esteja bem, é que eu não estou tão ótima quanto minha mãe acha que estou, ela simplesmente nunca percebe quando estou mal.
Uma coisa que eu nunca entendi direito é “esforço frenético para evitar um abandono/rejeição real ou imaginado”, nunca entendi o que isso realmente significa. Não sei se o que vou dizer condiz com isso, mas às vezes, eu tenho sonhos – não sonhos de verdade, é que minha mente fica flutuando em fantasias o tempo todo – que minha mãe, minha avó e/ou meu irmão morreram, isso fica na minha cabeça durante o dia todo, e a dor é tão real que eu simplesmente caio no choro e tenho que me segurar o resto do dia pra não explodir de tão forte que é isso. É claro que ninguém nunca percebe, mas parece que todo meu interior fica esmigalhado e eu realmente não sei como consigo sair de casa quando fico assim.
A “despersonalização”, como diz no artigo, esse sentimento que de não se é real, sempre fica comigo também, às vezes, num clique, eu acho que não sou eu, que sou fruto da imaginação do meu verdadeiro eu, que esta em um lugar muito ruim e resolveu me imaginar, pra conseguir viver melhor, quando penso nisso quase enlouqueço, porque não é possível afirmar se existo ou não, todos vocês podem ser tão fictícios quanto eu, sendo assim, fica impossível provar que existo.
O artigo também fala sobre a dificuldade que os borderlines têm de se definir sexualmente, o que me lembrou, que nessa semana mesmo, eu estava falando com um amigo sobre como eu não tenho certeza se sou do gênero feminino, das vezes que sinto que sou um homem e de como fico frustrada ao “descobrir” que sou mulher; algo engraçado disso é que mesmo se fosse ou virasse homem, continuaria sendo bissexual.
Bordeline não conseguem se definir em nada, na verdade, tenho amigos que esses dias comentaram que, “mesmo em situações hipotéticas eu não consigo definir o que quero”.
Pode até parecer que eu estou lutando pra me encaixar no perfil, mas essas características existem mesmo.
Bem, o que me levou a escrever esse email, é que, agora pouco, estava arrumando meu quarto e achei a cópia impressa daquele email que meu pai me enviou e o que ele diz no começo: “ainda não entendi os motivos dessa permanente busca pela autodestruição: pode ser necessidade de chamar a atenção, pois na sua visão míope de adolescente problemática, você pode achar que é invisível e ninguém presta atenção em você” – é verdade, eu me sinto invisível às vezes, principalmente quando vou comprar pão e a vendedora me vê sem me enxergar.
Então fui lembrando coisas e juntando fatos que coincidiram com o que li ontem, foi isso que me levou a escrever esse email. De novo, não quero me justificar, não quero me caracterizar como borderline; não quero voltar ao tratamento, mas essas coisas borbulham na minha cabeça e todas essas coisas de mudar de ideias de uma hora pra outra e de atos, mesmo os pequenos, impensados e impulsivos e injustificáveis, existem. Isso me incomoda e muito, mas eu tento o máximo ser quem eu sou sem machucar os outros. Estou sempre numa luta constante pra aceitar todos como são e para tentar-me por no lugar da pessoa antes de fazer uma coisa; e quando isso não é recíproco, penso “eu não faria isso, mas ela não é eu” e tento aceitar tudo e todos esperando sempre que eles possam me aceitar também.
Já faz um ano do meu atentado terrorista contra minha própria vida e eu ainda não sei se me arrependo ou não; ou do que exatamente me arrependo.
Não sei se já te agradeci por ter me ajudado, mas se não o fiz, aqui vai o meu muito obrigado por ter tido paciência e desculpa por não ter te tratado com o respeito que deveria e não ter te estimado tanto quanto deveria. Obrigada também por ter paciência de ler tudo isso aqui.
Com carinho, Lúcia.
Esta carta tão pungente, que respondi em seguida, me relembrou a aventura de trabalhar com Lucia e a acompanhar em momentos tão difíceis de uma adolescência povoada de fantasmas de uma infância turbulenta desde o início. Assim que respondi:
Fico muito contente de ouvir noticias tuas. Isto é um sinal de que foi muito significativo o tempo que passamos juntas. Entendo o teu desejo de ter teu próprio diagnóstico, saber enfim do que você padece, e com isto ficar esperançosa de modificar algumas coisas na vida que possam te deixar mais leve, mais feliz, menos assustada, com menos dor. Acho que existem fenômenos curativos na vida de todos nós, que não tem a ver necessariamente com tratamentos, remédios. Nós temos registros de memória tanto de fatos positivos como de negativos. As experiências positivas formam um precipitado que possibilita viver com mais espontaneidade e criatividade. Ser são, saudável, é aquele que pode acrescentar a sua vida este viver criativo. Quando a gente vive criativamente a gente usa os fenômenos curativos que vem das experiências positivas, isto é da vida cultural, (aulas de violino, de francês, escola, internet), de amizades, (você descreve um amigo), de cuidados, (você com os estimados gatinhos e também comigo, pela carta que me escreve, tão delicada e amorosa), da poesia, da literatura (gosto por leituras). Estes fenômenos curativos têm mais a ver com cicatrização do que com cura. A possibilidade de cicatrizar feridas emocionais (de traumas presentes e passados) depende de encontrarmos pessoas confiáveis e espaço adequado que produza uma troca e onde haja esperança. O que te quero dizer é que não importa o diagnóstico que temos da doença, isto é só um rótulo. O importante quando nos sentimos doentes, “despersonalizadas ou esmigalhadas, ou não entendidas”, é considerar a nossa área saudável, as nossas experiências positivas. É a partir delas que podemos colaborar para a cicatrização das feridas da nossa alma. Com isso que descrevi você percebe que sempre existe “um outro” na jogada, sejam gatinhos, amigos, professores, autor do livro, e eventualmente também, e porque não uma terapeuta. Este outro é para fazer a parceria tão necessária para que haja troca, para que possamos nos ouvir melhor, questionar, criar, transformar. Como na biologia, um ser fertiliza o outro e o que nasce são novos pensamentos, novas ideias. Veja você, a sensação de ser invisível, que às vezes te acomete. Agora estou te vendo, escrevendo para você, e assim para mim você que já tinha visibilidade, porque continua na minha memória, presente, passa, a saber, que é vista, passa, a saber, que existe mesmo! Ter paciência é uma característica saudável e criativa. Você teve paciência de escrever para mim. Ter paciência uma para com a outra já é uma boa troca, uma colaboração! Sempre que quiser trocar ideias escreva. Um grande abraço.
A partir desta experiência que me evocou vários outros atendimentos com adolescentes, reflito sobre o trabalho muitas vezes de pouca durabilidade em questão de tempo, dos jovens que se dispõem a chegar para nossa sala de análise.
Tenho ouvido retornos como estes de Lúcia que me fazem pensar em como uma intervenção profissional afetuosa, pontual, à moda de Winnicott nas suas primeiras consultas, pode alcançar e dar uma partida em um motor que havia de alguma forma emperrado, por falta de alguns ingredientes básicos e fundamentais.
Conhecer posteriormente o que sucedeu na sua evolução pode ser uma possibilidade muito rica de refletir sobre o alcance do que aconteceu com a dupla que se estabeleceu então, e pode permanecer ativa com um precipitado de experiências que pode ser utilizada no decorrer da vida, do analista e do paciente.
Quando penso em redigir este texto, escrevo para Lúcia perguntando se poderia incluir a mensagem dela em uma comunicação para uma publicação. Ela concorda e pede para mudar o seu nome. Comunica também que:
Estou bem, passei no vestibular – letras-francês -, estou namorando e trabalhando. Tenho algumas poucas explosões de raiva e frustração, mas procuro controlá-las. Acho que posso até dizer que nunca estive melhor. Obrigada, doutora, pela sua atenção e dedicação. Hoje vejo que poderia ter aproveitado mais o tempo que passamos juntas. Espero que esteja bem.
Dentro da minha prática de trabalho gostaria de comentar também outra vinheta clinica que me permitiu pensar no processo adolescente, em especial nas necessidades de flexibilidade do terapeuta quanto ao setting, para dar conta da diversidade de situações que se colocam atualmente.
Marcela de 17 anos, filha de um casamento desfeito quando contava três anos, vive com a mãe, longe afetivamente do pai, sem outro ambiente familiar próximo. Sempre teve dificuldades escolares; tanto para o aprendizado quanto para a sociabilidade, em especial com figuras de autoridade. Esta situação começa a piorar aos sete anos quando muda de cidade onde residia. Em outra escola com novos colegas, sente-se perdida. Quer se enturmar, mas ocorre que no seu aniversário onde vários colegas são convidados somente um chega. A partir desta experiência recusa fazer festas e participa de poucas. Está sem cursar escola há meses; não aceita ir. É convidada a se retirar de várias escolas, pois não colabora. Não faz tarefas, ou gazeia a aula. Mente para a mãe. Suas atividades atuais são aulas de dança, de francês e inglês e sair fins de semana com amigas. Vê televisão e filmes, além de permanecer longas horas na internet. Fica em casa de dia, geralmente dormindo. Aceita vir às sessões, mas muitas vezes falta. Muito silenciosa, com pouca vitalidade. Parece “entregue”. Começa a trabalhar quando é sugerido um material lúdico. Desenha com afinco, um trabalho muito expressivo. Em cada sessão inicia um trabalho, onde compõe com as letras de seu nome, desenhos diversos muito coloridos. De inicio nem cabem na folha, fica faltando espaço; fica cortado o projeto. À medida que o tempo transcorre o desenho vai tomando forma completa, o diálogo flui um pouco mais. Após férias e um ano de trabalho, decide não mais vir. Proponho mudança do enquadre. Vem ela com a mãe, menor número de vezes para um trabalho em conjunto. Começa um novo período.
Neste trabalho bem como no anterior há evolução visível. Visto pela mãe e por mim, não tanto por ela, que apesar disto, continua vindo. Está empenhada em aprender a dirigir acompanhada pela mãe; continua línguas e inicia escola, que havia abandonado há um ano e meio.
Entre o trabalho que julgamos adequado para determinada situação e o que é possível para a dupla paciente e analista, vai uma distância. Diversos fatores interferem nesta decisão, de manter o atendimento ou não, tendo a noção do alcance e do limite.
Limite econômico, limite de horários, de possibilidades de suportar e de reconhecer o que é possível para o paciente e para nós como terapeutas.
Comentários: Para um paciente que regrediu ao estado de dependência infantil, ou analisando com características esquizoides, o analista deve poder proporcionar um ambiente facilitador, o que ele só pode oferecer adaptando a técnica. Isso envolve a própria atitude do analista – sua contratransferência. Winnicott tem uma posição diferente de alguns outros analistas quanto a esta técnica. Acha ele que o analista está na posição da mãe de uma criança que ainda não nasceu ou é recém-nascida. Assim que cabe a ele ter outra posição no processo analítico. Nestes pacientes as experiências foram tão deficientes ou distorcidas que o analista pode ser o primeiro na vida destes pacientes a cumprir um papel de suprir condições ambientais essenciais, tornando-se um trabalho de construção. Neste caso não há transferência, mas existência, e criação, onde não existia nada. Winnicott também nos alerta em seu artigo “o ódio na contratransferência”, como para que venha a ser expresso o amor, que antes possa ser expresso o ódio. O analista precisa ser verdadeiro antes de tudo. Autêntico. Sem negar o ódio, sem revidar quando frustrado, sem esperar retribuições. O ódio vivido na ocasião deve ser guardado e ficar disponível para posteriores interpretações. A manifestação do ódio deve ser trabalhada e vivida como ódio objetivo em função de falhas objetivas.
Nestes pacientes muito regredidos, Winnicott nos alerta que para eles o passado não vem ao presente na sala de análise através da transferência. É o paciente que volta ao passado e é o passado. Assim que o analista se vê confrontado com os processos primários tal como em um setting que possuía sua validez original. Então o paciente poderá fazer uso das falhas do analista, a expressão de falhas passadas que não puderam ser confrontadas vividas e usadas. O paciente revive as falhas que causaram o rompimento do seu processo de desenvolvimento.
Nestes exemplos além de inúmeros outros podemos observar que, como relata Masud Khan: para Winnicott, o paradoxo da relação criança-mãe reside no fato de que o ambiente (mãe) faz o tornar-se Self da criança possível. (M.M.R. Khan, 1975). Acrescenta que isto só poderá ocorrer desde que a mãe considere a criança como um indivíduo.
Estas situações descritas de Lúcia e Marcela representam inúmeras outras que exigiram muita flexibilidade do terapeuta com relação a modificações no setting sem, contudo isso significar deixar de considerar a técnica e o conhecimento que devem nos acompanhar sempre.
Como citado por Winnicott: “Só podemos ser criativos com base na tradição”. Para que um analista seja capaz de realizar “outra coisa”, quando a análise padrão não é recomendada ou é impossível, e poder ir ao encontro das necessidades de um paciente especial, o analista precisa ter um bom manejo da análise padrão.
No último congresso de psicanalistas de língua francesa, François Villa, apresentou um trabalho intitulado: “O pai: uma herança arcaica?” Nele reflete sobre o modificável e o inalterável, de forma seguinte:
“Existe uma dimensão designada como: aquilo que é e não pode ser de outro modo. A outra lhe resiste apenas de certa maneira e é possível agir sobre ela: aquilo que é, mas pode perfeitamente ser de outro modo. Acrescenta que esta é uma distinção teórica que, no entanto não permite estabelecer uma distinção certa. Foi para sustentar melhor esta aporia que os psicanalistas postularam, como princípio da sua ação, tanto a necessidade da análise pessoal do analista quanto à prática da supervisão dos tratamentos e da escrita psicanalítica.”
Referências bibliográficas:
VILLA F. (2013) O pai, uma herança arcaica? Texto ainda não publicado.
WINNICOTT, D. W. (1962) Os objetivos do tratamento psicanalítico. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre. Artes Médicas.
Vera Marieta Fischer
e-mail: fischer.veramarieta@gmail.com
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CEP 80530-160 – Tel: 041-3262-2657/041-9986-1570 Curitiba-Paraná
[1] Psicanalista. Membro Associada da SBPRJ, Membro da FEBRAPSI, Membro da IPA e Membro fundador do Grupo Psicanalítico de Curitiba (GPC). Trabalho apresentado como Tema Livre, no XXIV Congresso de Psicanálise, em 27 de setembro de 2013, das 11:00h às 12:30h, no auditório Pedro de Medeiros, Campo Grande–MS. Trabalho a ser re-apresentado em 31 de maio de 2014, na Jornada: “Desafios do Contemporâneo”, no Grupo Psicanalítico de Curitiba.