Conversa com um psicanalista: “O Viver Criativo” (Vera Marieta Fischer)


I.Introdução

Gostaria de introduzir o que me motivou sobre outros assuntos a ideia de trazer para conversar este tema: o viver criativo. Depois de muitos anos de prática clínica, pensando sobre o trabalho com pacientes, também na vida cotidiana na relação com familiares, com amigos, fiquei refletindo e considerando sobre o que é que faz com que certas situações embora difíceis, por vezes graves, evoluam bem, se estabelecem relações, se formam vínculos, onde ambas as partes se beneficiam e outras onde não há esta condição, não há evolução, não ocorre um progresso, um amadurecimento. Claro que isto se dá por muitos fatores variáveis, porém há algo que favorece que se estabeleça um caminho para a sanidade, para a possibilidade de amadurecimento e evolução. Então pensei no viver criativo. Poder utilizar e desenvolver a ilusão, a confiabilidade, recursos para lidar com a vida. Fala-se mais de doença do que de saúde. Para Freud a pessoa saudável é aquela capaz de amar e de trabalhar. Winnicott acrescenta o viver criativamente como manifestação de saúde juntamente com amar e trabalhar. A palavra sane – derivado do latim sanus e do francês sain, começa a ser usada no inicio do sec. XVII quando apareceu em Hamlet de Shakespeare. O bardo inglês utilizou uma vez esta palavra na peça, usou mais de 200 vezes louco, (mad), e 35 vezes loucura. Ainda hoje não se fala muito em trabalhar com a sanidade. Expressão de Polônio: até na loucura precisa haver método. A criatividade primária de Winnicott representa um desenvolvimento da teoria de Freud baseada na sublimação. Melanie Klein via como uma capacidade de reparação. Para Freud criatividade é um processo de sublimação que envolve as pulsões, isto é, uma parte da vida mental. Para Winnicott, criatividade representa um aspecto fundamental na vida mental, envolvendo o centro da estrutura psíquica. (nos seus componentes pulsionais e sua dimensão sexual da criatividade, quando se torna uma possibilidade de fruição a serviço do ego). Para ele, criatividade primária se apresenta como um impulso inato que se dirige a saúde e que está vinculado aos temas: Necessidade da ilusão, nos primeiros dias ou semanas da relação do bebê com sua mãe. Capacidade da mãe de corresponder ao gesto espontâneo do bebê; Necessidade de um objeto, (alguém), para sobreviver ao seu amor cruel. (impiedoso)

II.  Como surge o viver criativo?

Todo desenvolvimento humano na área da cultura e da criatividade inicia, conforme Winnicott (1951), a partir do surgimento da ilusão na relação inicial mãe-bebê. A mãe no inicio da vida, através de uma adaptação quase completa às necessidades do bebê, propicia a oportunidade da ilusão de que foi ele, o bebê, quem criou o seio. De que o seio dela faz parte do bebê e está sob o controle mágico do mesmo. Ele e a mãe são uma coisa só. (Não há o que se chama um bebê sem a sua mãe). Neste período que ele chamou de dependência absoluta, ainda não há separação “eu-não eu”. Ele sente fome? O seio aparece! Surge bem no lugar que ele deseja. Desta forma o seio é “criado” pelo bebê, repetidas vezes, tanto pela sua capacidade de amar, como por sua necessidade de se alimentar. A mãe coloca o seio ideal exatamente onde o bebê está pronto para criá-lo. E no momento exato. Esta situação propicia a confirmação de que foi ele quem o criou. Visto de fora por um observador, sabemos que não foi ele, é claro. Mas esta é a ilusão. Para o bebê chegar a esta constatação, ele precisa de tempo e de um processo de desilusão suave que possa tolerar. Essa percepção de que o criador não foi ele deve ser suficiente para que não perturbe o “continuar a ser” do bebê. Ao longo do tempo, à medida que o bebê vai se desenvolvendo – até mesmo de um ponto de vista neurológico – ele vai podendo perceber, à custa de pequenas desilusões na relação com a mãe, que aquele objeto (seio), que antes era vivido como uma criação dele, na verdade não é. Então à medida que esta ilusão é mantida, vai podendo chegar à percepção clara do objeto separado dele. (esta fase W. denominou de dependência relativa). Se não houver falhas neste período, realiza-se uma parte da jornada do amadurecimento emocional, que é a conquista do “eu existo”. (eu-não eu). Da convicção de ser si mesmo. Na caminhada de um bebê de uma relação de dependência absoluta para o mundo simbólico, um bebê se utiliza de fenômenos e objetos transicionais. (1951) São objetos que a mãe deve tolerar, os quais são ao mesmo tempo elas próprias, e substitutos dela. São objetos que assumem um padrão de transicionalidade e que o bebê elege entre os 04 e os 12 meses. Eles que perdem o seu significado, ficando difusos e são espalhados pelo território intermediário, por todo campo cultural. Isto se amplia para a área do brincar, da criatividade, apreciação artística, sentimento de religiosidade, sonhar, no sentido saudável. No patológico para o fetichismo, mentir furtar, adição a drogas, talismã dos rituais obsessivos. Toda a possibilidade de comunicação entre os seres humanos tem inicio aí. Na ilusão de que você cria o mundo. Ilusão vem de iludere.  Ludere= brincar. À medida que a pessoa pode ter a ilusão de que foi ela que criou o mundo, abre-se uma oportunidade para atribuir significado a existência. Exemplo: uma criança brincando construindo castelinhos na areia, colocando ali os personagens de seu mundo interno que vão ganhando vida e significado. Estes processos da ilusão e do brincar são à base da saúde mental e do sentimento de criatividade.  Não no sentido artístico, mas no sentido de ter recursos para lidar com a vida. O bebê passa assim de uma posição de (eu sou deus), para eu sou uma parte da engrenagem. Da onipotência para a potência. Essa conquista do “eu” separado do mundo, através do processo ilusão-desilusão, acontece numa área intermediária ou transicional, entre a realidade e a fantasia. Um espaço que é concedido ao bebê, entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da realidade. Nesta área neutra de experiências entre o real e o fantasiar, é o verdadeiro “lugar” em que vivemos. Os sentimentos de ilusão e de criatividade são a raiz da saúde mental. Assim como também é a origem de toda a distorção que fazemos nas relações com as pessoas com as quais a gente convive. A ilusão e o fantasiar são essenciais para dar sentido à vida e a legitimar a percepção que temos das outras pessoas.

III. O que é necessário para que alguém se sinta sendo?

Para isso é preciso que o indivíduo seja governado mais pelo (agir) fazer pelo impulso do que pelo fazer (reagir) por reação a estímulos.  Assim que se pode dizer de algumas pessoas que elas não estão vivas quando só estão reagindo a estímulos ou impulsos. Viver criativamente significa para Winnicott a capacidade de viver e se desenvolver sem precisar ser aniquilado pela submissão. Significa a capacidade de ver o mundo com novos olhos o tempo todo. (a mesma rua com novos olhos). Ou os indivíduos vivem a vida criativamente ou ficam em dúvida se vale a pena continuar vivendo. Para ser criativa uma pessoa deve existir e possuir o sentimento de existir, não de uma forma consciente, mas como algo básico a partir do qual se pode operar. Isso indica que quem é, está vivo. Da mesma forma que o brincar e o ser são abrangidos pela relação precoce mãe-bebê, o viver criativo também pertence a esse âmbito. Winnicott em “viver criativamente”, (Tudo começa em casa 1970), realiza um de seus últimos trabalhos, sobre o viver criativo e a criatividade.  Importa para ele o “fazer que brote do ser”. Ele apreciava muito a música dos Beatles, em especial: Let it be… A criatividade é a retenção por toda vida de algo que pertence ao bebê: a capacidade de criar o mundo. Sempre que surpreendemos a nós mesmos estamos sendo criativos, e descobrimos que podemos confiar nessa nossa originalidade inesperada. Criatividade é o fazer que brote do ser.  Alguns bebês são obrigados a gastar o seu tempo e energia tentando chamar a atenção da mãe.  Eles são obrigados a fazer. E então ficam submetidos a esta necessidade, perdendo a criatividade. Ficam só fazendo e não sendo. (alguns bebês ficam olhando para a mãe e aguardando a sua aprovação). Em uma reunião de mães da escola onde a coordenadora pediu para as mães trazerem algo por escrito sobre o que os filhos pensam delas, um deles escreveu: minha mãe não confia em mim… A mãe surpresa perguntou a ele porque ele pensa assim. Ele disse: quando te digo que fiz a lição você vai ver se é verdade… Winnicott comenta que quando nós vivemos de forma criativa, nos nós tornamos capazes de nos preocupar com nossa destrutividade e de fazer alguma coisa a respeito disso. Uma coisa a ser feita é a reparação, outra é a criação de algo novo. (pode ser sonhar, brincar). A referência que ele usa é o modo como os bebês criam o mundo desde o inicio: “para o bebê isso não é difícil, porque se a mãe consegue se adaptar as suas necessidades, o bebê não toma conhecimento do fato que o mundo já estava lá antes dele ter concebido ou sequer pensado”. Mia Couto, escritor português moçambicano, conta que quando era menino foi mandado buscar pão na panificadora; chegou às 6 horas quando o pão estava acabando. A próxima fornada seria às 12horas; sentou no murinho e ficou esperando. Os pais foram procurá-lo por toda parte, e quando o viram e questionaram o que estava fazendo, ele disse: estava só olhando… (ele continuou com esse olhar criativo vida afora). Para que se dê o desmame é preciso uma boa experiência da amamentação. Para que se alcance a desilusão é preciso viver a experiência de ilusão. O que funda o viver criativo é a apercepção criativa que por sua vez se funda na experiência de fusão com a mãe. É esta experiência de “retenção da mãe na mente”, que evolui até chegar às lembranças, tornando-se o lugar da experiência cultural. Viver criativamente é preservar algo de pessoal, talvez algo secreto, que é inconfundivelmente você mesmo. Fazer algo para você. No viver criativo: não há submissão, há liberdade e espontaneidade, há impulsos e não reação a estímulos simplesmente, há convicção de ser si mesmo.

IV. Como se desenvolve o sentido de realidade?

Um bebê no seu desenvolvimento vai sendo preparado para encontrar um mundo de objetos e ideias, e segundo seu crescimento nesse aspecto, a mãe vai lhe apresentando o mundo. Devido ao grau de preparação da mãe nestes tempos iniciais com seu bebê, (Preocupação materna primária – devoção) a mãe o capacita para experimentar a onipotência e ao bebê encontrar aquilo que ele cria, e a vincular isto com o que é real. No entanto aquilo que está sendo criado, precisa ser realizado concretamente. Alguém precisa estar lá. Então o principio da realidade se introduz. Assim que a criança tem que ser capaz de encontrar aquele objeto que ela é capaz de criar, e ser capaz de criar o que ela encontrar. Nesta passagem da onipotência para sua perda gradual, o objeto transicional pode ser visto como um símbolo que representa a confiança na união do bebê e da mãe, baseada na confiabilidade e capacidade dessa mãe de saber o que o bebê precisa através da identificação com ele. Nesta mesma reunião de mães da escola, outra mãe leu o depoimento de sua filha adolescente: …minha mãe é inteligente pra saber quando eu estou com frio, pra saber se eu estou doente, pra saber o que dar para os outros de presente, pra saber quando eu estou me sentindo mal, mesmo quando tento esconder… Quando o ambiente está disponível a pessoa pode transformar a experiência em algo seu próprio.

V. O que caracteriza uma atividade criativa?

Qualquer atividade pode ser criativa ou não. Cozinhar por ex. Um jeito é seguir rigidamente instruções, outra é a cozinha criativa, cozinhar inovando ou fazendo do jeito que for possível. No primeiro caso o cozinheiro fica dependente, escravizado com a norma. O outro se sente original, surpreende a si mesmo e pode confiar na inesperada originalidade. Mesmo a pessoa com um equipamento pobre pode a experiência ser criativa e ser sentida como excitante no sentido que há sempre algo de novo e inesperado no ar. Winnicott no decorrer da sua obra ressaltou o tema do viver criativo, independentemente da capacidade de se gerar obras de arte a partir deste viver. Considera que ser criativo pode ser uma coisa em si. É necessário a um artista, para produzir sua obra de arte, porém é algo que se faz presente quando qualquer pessoa, em qualquer idade, se inclina de maneira saudável para algo, realiza alguma coisa, qualquer que seja. Pode ser prolongar o choro produzindo um som musical, fazer sujeira, ou um arquiteto pensando na sua construção, no material que vai usar. O importante é que seu Impulso criativo tome forma, e o mundo seja testemunha dele.

VI. O que caracteriza uma vida não criativa?     

O sintoma de uma vida não criativa é o sentimento de que nada tem significado; sobrevém um sentimento de futilidade, de que nada importa. Há pessoas que se aferram a sanidade. Tem medo de ser chamados de loucos. Aferram-se a realidade compartilhada. –O senhor acha que estou ficando maluca? – Eu acho que sim. Você está maluca, perdeu a razão. Mas vou te contar um segredo: as melhores pessoas são assim… Lewis Carol: “Alice no país das maravilhas”. Uma forma de dizer que pessoas por demais ancoradas na realidade, não utilizando a fantasia, “normóticas” no dizer de C. Bollas adoecem de excesso de vinculação com a realidade. Duas crianças brincavam de enfileirar cadeiras, formando um trem; a primeira era a locomotiva as demais os vagões, onde os bichos sentavam; uma era o condutor, outra o cobrador que ia picotando os bilhetes. Passa um amiguinho e elas convidam: venha conosco brincar de viajar no trem. Isso são somente cadeiras, responde… Perde contato com o mundo subjetivo e com a realidade criativa dos fatos.

VII. Onde se localiza esta área do viver criativo?

Localiza-se no terceiro espaço, área de descanso e de amorfia, (mas não de caos e desorganização), área da experiência cultural. Ela não faz parte da realidade interna nem da externa, é um paradoxo, é uma área de mutualidade, de experiência compartilhada, de superposição do espaço psíquico da mãe e do bebê. Este terceiro espaço é o local da experiência cultural, do viver criativo e do gesto espontâneo. Ele desenvolveu uma ideia de um espaço intermediário entre o objetivo e o subjetivo, entre a presença e a ausência, entre o dentro e o fora, no qual se localizaria a experiência criativa. É o espaço dos objetos e dos fenômenos transicionais. Assim que na criatividade não há submissão; existe liberdade, transformação e sanidade. Winnicott foi o autor que mais se dedicou a pensar sobre a capacidade criativa. Toda a obra dele é permeada por esse tema. O paradoxo é que o objeto deve se apresentar para paradoxalmente ser criado. Comentário de Winnicott… Onde estamos quando ouvimos uma sinfonia de Beethoven, ou estamos entretidos brincando com os netos? Certamente nesta terceira área, potencial, entre o real e o fantasiar, na área de criatividade.

VIII. Criatividade no nosso trabalho como terapeutas.  

O analista deve ser criativo, não deve estar submetido à ordem de um analista interno ou de uma teoria, ou de um ideal de ego que exija perfeição. Ele deve estar ao seu lado usando a palavra tão expressiva posta em grande circulação por Winnicott: “Usando da condição de brincar”. Brincar é poder dar livre expressão e expansão às fantasias, sem as cadeias de teorias ou seus representantes que as proíbam, as quais se encontram com a situação clinica, achando formas de expressar conteúdos. Deixar fluir, não deixar empacar e emperrar. Um antifluxo. Enfim o analista deve se deixar conduzir pelo paciente. Freud comparou a técnica analítica com uma escultura. “Ela retira da pedra o tanto necessário de superfície que encobre a estatua nela contida.” Para tanto o escultor tem em sua mente o que está oculto na pedra. É assim com a mãe e seu bebê, com o analista e seu paciente. Esta visualização parte do processo criativo que irá levar ao desenvolvimento de um ser e/ou de uma obra de arte.

IX. Criatividade na experiência artística

O viver criativo se diferencia da criação artística. No viver criativo descobrimos tudo aquilo que fortalece o nosso sentimento de estarmos vivos, de que somos nós mesmos. As criações artísticas de poetas escritores, escultores, pintores, são diferentes do viver criativo embora possa incluí-lo. Pessoas como estas engajadas em criação artísticas precisam ter talento especial o que não é o caso para viver uma vida criativa. Criatividade é uma potencialidade. Depende de uma atitude para criação, suportada por um ambiente facilitador. Criação é a produção atual de alguma coisa. Implica em ter uma estrutura de ego através da mobilização da energia pulsional dirigida. A mobilização da criatividade pode conduzir a fenômenos chamados curativos, (healing phenomena). Podemos citar neste particular a experiência de Freud com Fliess, seu amigo para quem suas missivas tinham também esta função. As pinturas de Frida Khalo, em sua maioria autorretratos, permitiram a artista mexicana aplacar seu intenso sofrimento psíquico, da mesma forma que Camille Claudel através de suas esculturas buscava elaborar suas dificuldades emocionais. Também no setting terapêutico com crianças ou adultos, o uso compartilhado de desenhos e jogos permite estabelecer uma relação de mutualidade, e transmissão de confiança, no exercício desta atividade criativa. Viver criativamente põe em ação os fenômenos curativos (cicatrizantes) precipitando lembranças mnêmicas positivas, permitindo encontrar alegria e a ideia de que a vida vale a pena ser vivida ao ser vivida criativamente.

Referências bibliográficas:

Abram, J. (1966) A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter.

Newman,A. (1995) As ideias de D. W. Winnicott, Rio de Janeiro: Imago.

Outeiral, J. Moura, L. (2002) Paixão e Criatividade. Rio de Janeiro: Revinter.

Outeiral, J. Thomas, T.O. Psicanálise Brasileira. Criatividade e Técnica. Honigszteyn, H. (1995) Porto Alegre:Artes Médicas.

Roussillon, R. Creativity: A new paradigm for Freudian Psychoanalysis. (texto não traduzido).

Winnicott, D.W. (1970) Tudo começa em casa. Viver criativamente. S.Paulo: Martins Fontes.                  

[1] Psicanalista Membro Fundador do GPC, Membro Associado da SBPRJ, da FEBRAPSI e da IPA. Conversa com um psicanalista. Atividade do dia 15 de maio, no GPC, às 20h30m sobre “O viver criativo”.

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