Comentário sobre o filme “O Cisne Negro” (Edna Wallbach)

Ballet   “ O Lago dos Cisnes”

No dia 20 de fevereiro de 1877 estreou em Moscou, o “Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky, escrito a pedido do Ballet Bolshoi. É uma peça em 4 atos.

Ato I – realiza-se no castelo o aniversário do príncipe e ele ganha de sua mãe uma balestra. Decide que quer caçar.

Ato II – o mago Rothbart é o dono do lago e do bosque e com um feitiço transforma Odette e seu séquito em cisnes brancos e só a noite, quando o escuro a protege do feitiço, ela adquire a aparência humana. Dança então sobre um grande lago, formado pelas lágrimas de sua mãe, inconformada com seu destino. A princesa só poderá ser libertada por um homem que ame somente a ela.  O príncipe apaixona-se perdidamente por ela e jura que vai quebrar o feitiço.

No ato III – Na corte da rainha aparece um nobre cavaleiro com a sua filha que na realidade é a feiticeira Odile com o rosto de Odette. O príncipe enganado escolhe Odile como sua futura esposa, quebrando assim o juramento que havia feito à Odette.

Ato IV- Os cisnes brancos tentam em vão consolar a princesa. Aparece o príncipe e descobre que havia sido enganado.  Odette o perdoa e os dois renovam seus votos de amor um pelo outro. O mago decide então se vingar e inunda as margens do lago. Odette e suas princesas se transformam em cisnes novamente e o príncipe desesperado se afoga nas águas do lago. O príncipe não sobrevive e Odette desesperada com a dor que sente em perder o amado, morre. Uma trágica morte de amor.

Cisne Negro é um filme genial de Darren Aronofsky (42) nascido em Nova York no dia 12 de fevereiro de 1969, e formado em cinema, interpretação e animação pela Universidade de Harvard. Em 1996 fez seu primeiro filme e ganhou o premio de melhor diretor no Festival Sundance de Cinema. Fez ainda: O Lutador, Fonte da Vida, Réquiem para um Sonho. Mas Cisne Negro neste ano, 2011, teve cinco indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz, Melhor Edição e Melhor Fotografia. Natalie Portman por sua interpretação de Nina levou o Oscar de melhor atriz. O filme já tem um total arrecadado de trezentos milhões de dólares.

Nina Sayers é bailarina de uma companhia nova-iorquina de ballet. Sua vida é inteiramente dedicada à dança. Mora com a mãe. O diretor artístico da companhia (Thomas) decide substituir a bailarina principal, Beth, na apresentação de abertura da temporada.  Nina é sua primeira escolha, mas surge uma concorrente, a nova bailarina Lily, que deixa Thomas impressionado. O Lago dos Cisnes requer uma bailarina que seja capaz de interpretar tanto o cisne branco com inocência e graça, quanto o Cisne Negro que requer malícia e sensualidade. Nina se encaixa perfeitamente no papel de cisne branco, porém Lily é a personificação do Cisne Negro. As duas desenvolvem uma amizade conflituosa, repleta de rivalidade, competição, ciúme, e Nina é forçada a entrar em contato com seu lado mais sombrio.

Cisne Negro faz uma viagem emocionante e aterrorizante à mente de uma jovem bailarina. A bailarina é movida pelo desejo de superação, por tornar-se a primeira bailarina. Interpretar Odette não é problema, uma vez que ela partilha com a personagem suas qualidades metódicas e virginais, é pura, ingênua e inocente. O desafio é a interpretação de Odile, o Cisne Negro, a encarnação da sensualidade e sedução.

Nina é uma garota amargurada, seriamente perturbada, obcecada pela perfeição.

O filme começa sob um foco de luz que parece desesperado em focar a face da bailarina, mas sem conseguir iluminar a angústia dos seus olhos e a dor de sua face.   Essa bailarina que se vê obrigada a partir nessa viagem angustiante em que tem que deixar um lado seu, que até aquele momento ela própria desconhecia, tomar conta de si. Seu reflexo negro (como o cisne que precisa interpretar).

O espectador acompanha a dor das juntas estalando ao acordar, a preparação dolorida das sapatilhas cheias de rasgos e dobras, dos diversos machucados, do suor, da disputa entre as bailarinas, da disciplina e do peso por trás daqueles movimentos que enchem o palco de beleza. Porém o filme é muito mais sobre esse impulso violento e destrutivo que carrega a protagonista em direção a essa nova pessoa que ela não desconfiava ser, mesmo que isso lhe custe a sanidade.

No pesadelo do início, ela é tomada pela figura amedrontadora do feiticeiro.  Ela acorda assustada… Conta para a mãe que teve um sonho louco, que estava dançando o cisne branco, mas era uma coreografia diferente, mais parecida com a do Bolshoi – o prólogo, quando Rothbart coloca o feitiço nela.

Em seguida aparece seu quarto. Um quarto de menina, todo rosa, cheio de bichinhos. Menina – Nina que não teve chance de crescer.

Vive dominada por uma mãe controladora, intrusiva e invejosa, que teve uma gravidez indesejada aos 28 anos, no auge da carreira e isto a deixou frustrada e amarga. Ou seja, Nina para nascer, matou o sonho da mãe de ser a Rainha-Cisne. A mãe então quer fazer da filha o que não pode ser. Superprotege, mas é uma superproteção que disfarça uma rejeição e não dá à filha o direito de ter sua própria individualidade, de crescer, tornar-se mulher, assumir a sua sensualidade. Todo o seu lado impulsivo, agressivo, que todos nós temos, e que precisamos ter para crescer, é totalmente negado e cindido.  Todo esse lado está interditado, como um feitiço.  Ela não consegue integrar. Não consegue integrar porque ainda encontra-se fundida na mãe, numa corrente de amor e ódio. Nina que pretende a independência, mas a culpa pelos ataques fantasiados e reais à mãe, não o permitem.  Assim como Odette, enclausurada num corpo de cisne, Nina tem seus desejos interditados, enclausurados num cárcere psíquico, assim como as pacientes anoréxicas e bulímicas, onde o caminho pulsional está interditado geralmente por conflitos importantes com as figuras materna e paterna.

No filme, chama à atenção a ausência total e completa do pai. Mas Thomas, o professor preenche a figura paterna. O professor que a seduz, ela quer ter uma relação sexual com ele para poder se sentir viva e se realizar, mas ao fazer isto sente que está tendo relações com o pai e, portanto estará ocupando o lugar da mãe e, aí, tendo que se matar.  A culpa é insuportável, e na sua imaginação doentia ela não a suporta tendo então que dar fim à sua vida. O professor se confunde com o pai. Ela não consegue discriminar.

Com o filme, acompanhamos a desintegração da saúde mental de Nina, devido à pressão do diretor, às duplas mensagens da mãe que superprotege e mal disfarça uma rejeição violenta e a chegada de uma concorrente. O diretor e o fotógrafo não economizam em uma inquietação das imagens e nas opções visuais que formam esse caminho, ilustrando essa viagem sem volta.

A mãe vê arranhões em suas costas e a chama de “garota doce”.

Ela tem comportamentos autodestrutivos, como podemos ver nas várias cenas em que ela arranca a pele, rasga a sapatilha, rasga a unha do pé, vomita, etc. numa tentativa de expulsar essa mãe violenta e rejeitadora.

No Ballet precisa ser agressiva inclusive porque toma o lugar da primeira bailarina, Beth que é aposentada. Ela se culpa por ocupar o lugar da Beth, assim como se culpa por ocupar o lugar da mãe.

                O diretor diz: “Todos conhecemos a história: uma garota virginal, pura e doce, presa no corpo de um cisne. Ela deseja a liberdade, mas só o amor verdadeiro pode quebrar o feitiço. Seu desejo quase se realiza na forma de um príncipe, mas antes que ele possa declarar o seu amor, a irmã dela, o cisne negro, o engana e o seduz. Desolado o cisne branco pula de um penhasco se matando, e na morte encontra a liberdade.”

                 Diz ainda que a nova temporada vem com o “Lago dos Cisnes” renovado – mais visceral. Precisa de uma nova rainha dos cisnes, alguém que possa encarnar o cisne branco e o negro. Ou seja, para interpretar esses dois personagens, esse alguém tem que ter integrados dentro de si esses dois aspectos.

                O diretor diz: “Acorde a Odile, Nina. Encontre o cisne negro que existe dentro de você! Não seja tão controlada. Você tem que seduzir não apenas o príncipe, mas a corte, a platéia, o mundo todo, como uma aranha fazendo a teia. Ataque! Ataque!”.

Nina tem que lidar também com uma rival quando chega Lily. Já que chega essa nova garota, ela vai para o banheiro vomitar.  A mãe telefona o tempo todo e ela também telefona para a mãe. Mas ao mesmo tempo, escutamos uma conversa da mãe com outra pessoa, dizendo que as meninas não têm a magia da Beth. Aí vemos a mãe dando uma dupla mensagem, quer que a filha seja perfeita como ela gostaria de ter sido, mas ao mesmo tempo, elogia a outra, dizendo que a Beth nunca fez nada menos que perfeito.

Aí neste momento tem uma cena muito interessante: Ela toda de rosa cruza no corredor com uma garota toda de preto que tem o rosto dela. Ou seja, é o seu lado negro que se encontra dissociado.  Quando chega em casa abraça a mãe e começa a chorar. Aparece aí o pé sangrando, numa tentativa de mostrar o esforço que essa garota está fazendo para ser perfeita. A mãe vai tratar do pé e diz que lembra quando tudo começou, lembra que era ela quem levava a filha a cada uma daquelas aulas, ou então ela ficaria completamente perdida, etc. Ou seja, ela devia todo aquele sucesso ao sacrifício da mãe.

Mas o diretor diz que só vê nela o cisne branco, ela é bela, assustada e frágil, faz todos os movimentos corretos, mas não se entrega. E afirma que ela tem que surpreender, transcender. Ela que tinha ido até o diretor com o batom que havia roubado da Beth, e estava mais sedutora, dá uma mordida no Thomas quando este a beija.  É neste momento que ele descobre que ela também pode ser autêntica, também pode mostrar seu lado mais impetuoso, violento e hostil. Gosta disso e resolve dar-lhe o papel de cisne negro.

Na mesma hora aparece no banheiro a palavra – VADIA. Seria uma alucinação? Não seria ela se recriminando?

A cena dos quadros no quarto da mãe, cheio de auto-retratos, mostra uma mãe narcisista e, diante de tanta pressão, começa a ter alucinações, vê as figuras se mexendo, como se todas a estivessem recriminando.  Arranha mais ainda as suas costas, e a mãe vem com um enorme bolo que havia comprado para festejar. Ela não quer comer, mas a mãe ameaça jogar o bolo inteiro fora, numa grande chantagem.  Então ela come o bolo.

Começamos então a acompanhar a desintegração da saúde mental de Nina, devido ao sucesso, a ter realmente substituído a Beth, ou seja, a mãe, à enorme pressão do diretor, e a chegada de uma concorrente.

Tem uma festa onde ela é apresentada como a nova rainha dos cisnes. A mãe não vai à festa. Ela vai ao banheiro arrancar a pele do dedo numa cena impressionante onde vemos o quanto ela precisa se machucar. Talvez se machucar pra se sentir viva, assim como as pessoas que se cortam.

O Thomas a convida para tomar um drinque em sua casa, ela encontra Beth no hall da escada e esta a chama de vadia, pergunta o que foi que ela fez para conseguir o papel, etc. Ela vai realmente até a casa dele e ele tenta seduzi-la, mas percebe que ela ainda é virgem. Manda que ela vá para casa e se masturbe.

Ela está começando a enfrentar a mãe, a sair com a amiga apesar da mãe tentar não deixar, vai para uma balada, aceita uma droga (vemos aí que Lily expressava o mundo da destrutividade interna da própria Nina), dança, se solta e escuta a mãe a chamar: “Garota doce, garota doce”. Volta para a casa e a mãe a enche de perguntas: Aonde foi? Tem idéia de que horas são? A mãe é super invasiva e ela coloca uma espécie de cabo de vassoura na porta querendo ter sua própria privacidade.

As cenas de masturbação, assim como as cenas de sexo com a Lily me pareceram uma tentativa dela conhecer o próprio corpo, uma tentativa de começar a conhecer a sua sexualidade. Aliás, na cena de sexo se prestarmos bem a atenção vamos ver que ela está transando com ela mesma, o rosto de Lily e o dela se confundem e aí ela mesma a chama de garota meiga, numa mistura também com a figura da mãe. Ela entra num estado confusional, não sabe mais se foi fantasia ou realidade.

A culpa é tanta, que depois da primeira cena de masturbação ela alucina que a mãe está ali no quarto.

No dia seguinte em que ela ousou desobedecer à mãe é o dia de um ensaio importante e a mãe não a acorda. O castigo é imenso! A mãe mostra que na realidade quer que a filha perca o papel, a mãe invejosa, a mesma mãe que dá o bolo, que fala que as meninas não têm a magia da Beth, que não vai à festa onde a filha é apresentada como a Rainha Cisne e que não a acorda no ensaio.

Quebra a caixinha de música, joga fora seus bichos de pelúcia. Parece que está dando “adeus” à garotinha doce e meiga.

Mas tudo isso lhe é imposto de fora para dentro, e ela não agüenta.  Por isso numa análise levam-se anos para com todo cuidado, podermos junto com nossos pacientes, desmanchar essas defesas.  Lily quer ser sua substituta, mas ela com medo de ser realmente substituída, começa a ensaiar desesperadamente, e começa a alucinar. Ouve gargalhadas quando as luzes se apagam, vê ou alucina o Thomas, o professor, o pai, transando com a Lily, ou com a rival , com a mãe, numa nítida cena primária onde se sente totalmente excluída e aí vai piorando. O clima vai ficando cada vez mais enlouquecido.

Tem uma cena onde se masturba na banheira e de repente vê umas gotas de sangue pingando, e vê um rosto que também é seu próprio rosto. O seu Eu destrutivo, a tinha machucado outra vez.

Vai pedir desculpas à Beth, devolve as coisas que havia roubado e vê Beth se matar, com a lixa que ela havia devolvido. Triunfar sobre Beth, a aposentada Rainha-mãe, é sentido como um triunfo sobre a mãe. Vai devolver os objetos que havia roubado de Beth, para mostrar que ela imaginava não apenas estar roubando o lugar de Beth, mas também estava roubando o sonho da mãe. Ela está matando a mãe. Aí o conflito piora, começa a se arranhar cada vez mais, vê penas saindo de suas costas, vê seus pés tornando-se pés de cisne. Tem a cena das pernas se quebrando, significando um esfacelamento de ego.

A mãe atrás dela, quer saber se o professor está se aproveitando dela, e aí diz: “Só quero que você não cometa o mesmo erro que eu. Eu tinha 28 anos, estava no auge da carreira e tive que desistir para ter você.”

Começa então a delirar, e briga com a Lily no banheiro, quebra o espelho e na sua alucinação pensa que matou a sua rival. Se prestarmos bem a atenção nesta cena, vemos novamente que é ela mesma, o rosto é o da Nina numa luta de morte entre o cisne negro e o cisne branco.  Aí, depois de matar o cisne branco, ela dança o cisne negro como nunca havia dançado. Foi maravilhoso, ela encarna tanto o papel que chega a alucinar que está criando penas. Beija o Thomas com sensualidade.

No final ainda diz que sentiu a perfeição – foi perfeito. E Morre! Precisou morrer porque estava interditada de mostrar seu cisne negro. Ou seja, para não matar a mãe, matou a si própria.

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 Comentários de Edna Maria Romano Wallbach

(ednawallbach@yahoo.com.br)

 – Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Núcleo Psicanalítico de Curitiba.

– Reunião Científica Cultural do dia 28.10.2011 no Núcleo Psicanalítico de Curitiba.

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