Comentário do filme: AMOR[1]
Direção de Michael Haneke
Encontro de Psicanálise e Cultura
Cleuza Mara Lourenço Perrini[2]
O Filme fala por si…como falar dele? Lembro-me de um colega que disse que não dava para resumir Freud porque corríamos o risco de escrever mais que ele.
Assim…Vou partilhar com vocês minhas emoções/ reflexões do filme AMOR:
PUNGENTE- BELÍSSIMO – DILACERANTE, SEM NOS PROPICIAR CONFORTO, COMO O TÍTULO PODERIA SUGERIR.
“Não há nenhum detalhe supérfluo ou banal, nem concessões sentimentais edificantes ou conciliadoras na historia de um casal IDOSO formado por Anne e Georges (Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant, dois monstros sagrados da nouvelle vague, em interpretações soberbas). Eles retratam o decorrer de acontecimentos cotidianos, da finitude humana e tétrica normalidade”. (Mendes M.)
A meu ver, AMOR retrata nosso interior, como o é retratado no próprio filme. “Se desenrola dentro do apartamento, limites estreitos do confinamento aos muito velhos e muito debilitados, – que o diretor apresenta em esparsos movimentos de câmeras, longos planos estáticos e close-ups cada vez mais dilacerantes, à medida que George vê a outrora elegante Anne se desfazendo diante de seus olhos, com algumas insinuações pequenas de vida lá fora”. (Mendes M.)
É o nosso interior, quando o exterior pouco vale nesse momento? Ou que este exterior só mais enlouquece?
“Haneke não desvia o olhar de situações que outros instintivamente atenuariam, e registra com inabalável sinceridade até os aspectos mais humilhantes que a decadência física e mental impõe aos que passam a depender dos outros para absolutamente tudo.”(idem)
Amor é um drama silencioso, como a dor humana. Inclusive a dor humana de não aceitar, nem dar a chance de pensar na nossa limitação.
O objeto da paixão, assim como na relação mãe/filho, é um objeto insubstituível (para a criança) e necessário, porque responde a um desejo que se torna NECESSIDADE. É através dessa paixão que a criança, futuro homem, encontra o amor. Com esse amor, vem também a nostalgia do prazer pleno, imaginariamente vivido nesse encontro com o primeiro objeto. Aulagnier diz que o amor sempre trará consigo a angústia pela ideia de que, ao viver uma relação amorosa, poderá ser vivido o excesso de sofrimento que sobrevém.
Haneke confirma isso quando retira “todos os véus da ilusão”, da audácia, da superação…do próprio amor. Assim… sobra a morte como companheira.
Haneke “consegue ser violento e terno. Estupidamente tocante, Amor é um soco no estômago físico e emocional. Trata sem artifícios a extensão de um sentimento, que apesar de imenso, não é capaz de driblar o inevitável”(Camargo. P).
Penso que o diretor não coloca mais personagens, tais como, cuidadores e enfermeiros, durante toda a trama, sugerindo ao meu ver, que este é vivido assim, SOLITARIAMENTE, independente de quem nos rodeia.
Não temos escapatória…a dor é inevitável…a perda…o fim…
Sapienza & Junqueira Filho (1977) assinalam que, segundo as tradições míticas, a função do amor é principalmente “gerar uma cooperação entre seres permitindo que cada um seja mais e, ao mesmo tempo, amplie sua reconciliação consigo mesmo (p185). E isso se dá quando os elementos da dupla suportam, por um sentimento de fé, vivenciar uma entrega profunda um ao outro, vivenciar o sentimento de ser só e ao mesmo tempo dependente”.
A tensão entre Anne e George nos invade como um amor que de tão delicado, embrutece e enternece. E o suicídio e assassinato são brutos ou ternos? Nada no filme nos clareia quanto as probabilidades e improbabilidades que temos …não sobra alternativas…o fato é que morreremos.
Freud, em além do Princípio do prazer, nos comunica que caminhamos inexoravelmente para a morte: “o objetivo de toda a vida é a morte”. ”Esses tortuosos caminhos para a morte, fielmente seguidos pelos instintos de conservação, nos apresentam hoje, portanto, o quadro dos fenômenos da conservação”
Buscamos o inanimado quando queremos tranquilidade, paz e prazer. O Instinto de morte é soberano para nós seres humanos. A busca do repouso definitivo frente a essa labuta e terrível humanidade.
Então o título desse filme poderia ser: Muito além do princípio do prazer? Seria aceito?
A dupla Anne e George de externo passa a ser interiorizado por nós, a medida que vivemos com eles suas dores. É o outro que passa a habitar em mim. Freud nos fala do estranho/familiar, esse outro que sou eu como se eu não fosse e que me repulsa/atrai; me captura, me atemoriza, me surpreende, me assombra, a minha sombra. E que todo foco requer um desfocar-se para ver o outro lado, aquele que está oculto: mas que está ali, em mim e no outro. George e Anne. Quem é quem e quem somos nós? Certamente não mais os mesmos depois dessa experiência vivida.
Assim…após assistir e viver o filme me vi repetindo, como num velório…quando chega cada pessoa para dar condolências… todos os últimos passos…como uma elaboração…como uma busca de quem sabe, num lapso, encontrar uma resposta, um consolo…Partilho esses momentos com vocês…
GEORGE E ANNE
As portas que são arrombadas no final…início e começo de tudo.
As janelas que abertas se abrem para o quê?
Porta…tentativas de roubo…do quê? Prenúncio da morte?
Portas lacradas…flores frescas…o que cheira mal? O segredo?
O espetáculo de piano?…no entanto nós vemos é o público… É o diretor nos convidando a assistir a vida: como ela é?
“Imagine a casa arrombada e a gente no quarto? Eu morreria de pavor…eu também”. Ironia…verdade que se desenrolará e que se anuncia. Vergonha da decrepitude humana.
Após o espetáculo a admiração pela SEMI COLCHEIA: sugestivo!…semicolcheia é um quarto de tempo! É o tempo que eles tem? Quarta idade? E esta vai desenrolar-se num quarto?
A dor anunciada no momento da desgraça que também anuncia: “O saleiro está vazio”. Associo com a música:
O Sal da Terra (Beto Guedes)
Anda! Quero te dizer nenhum segredo
Falo nesse chão, da nossa casa
Vem que está na hora de arrumar…
O sal da terra
O pé na terra
A paz na terra
Anne nega a realidade….medo de médicos…já se anunciava o medo de ser cuidada? Quem aguenta a dependência absoluta? Quem atira a primeira pedra?
TELA ESCURA – ESCURO
Netos, filha e genro distantes:
G: “Francamente, você não pode fazer nada”
Eva: “Entrei aqui e lembrei que vocês faziam amor quando eu era pequena. Eu ouvia e me tranquilizava que vocês estariam sempre juntos”.
E morreriam juntos?
PROMESSA E PACTO DE MORTE?
“Não me leve nunca mais ao hospital. E não fique com peso na consciência”!
ESCURO
Um renuncia ao outro/ se isolam. Não convivem mais com conhecidos/ nem telefonemas.
Troca de confidências: histórias nunca antes contada: “Tem tantas ainda!”
Percepção madura do outro:
VOCÊ É UM MONSTRO AS VEZES.
MAS VOCÊ É GENTIL
George Sai para um enterro…
Volta e encontra-a caída em frente a janela aberta: “Eu fui lenta de mais”…para se jogar? Ela quer morrer…
Surpresa da visita do aluno admirado – vergonha
Satisfação inicial com a cadeira de rodas elétrica…duas crianças…
A vida vai entrando na rotina da decadência, da humilhação e da constatada decrepitude humana.
Ela cai da cama e ele se impacienta.
PESADELO : a vida alagada e sem elevador …
Eleva-a-dor.
Se perdem nos dias
A filha vem: só fala…não ouve. Fria. No entanto Anne na sua dificuldade sugere…”Tudo – se – resolve – após – minha – morte…” sugerindo…você vende o apartamento…rápido…(minha mãe)…três gerações: avó, mãe e filha.
BALANÇO: O ALBUM DE FOTOS: É lindo a vida: Foi bom!
IMPACIÊNCIA SATURAÇÃO
DÓI DÓI…no entanto o som que escuto é de MÃE…mãe. Lembrança da mãe em momentos de dor…da própria morte.
Momentos de TERNURA: Cantam juntos cantigas infantis, como quem está aprendendo a falar.
MOMENTOS DE DESESPERO:
É isso que você quer? MORRER?
Estou exausto – sugerindo cansaço, doença do corpo e da alma?
BATE NELA
PRIMEIRA VISITA DO POMBO/ DA MESMA JANELA EM QUE ELA QUERIA SE “LIBERTAR”
CONFLITO: Conflito humano: Despede a cuidadora indelicada e ele mesmo a maltrata.
QUADROS QUE DESFILAM AOS NOSSOS OLHOS. Quadros da CASA, cada um contando a sua história.
Visita surpresa da filha.
HORA FATAL: Ele conta uma história de criança, de separação e de provação.
Anne dilacerada: “DÓI, dói”
A história do cartão postal cheio de estrelas que ele não pôde encontrar mais e nem pode contar mais…com o socorro da mãe…nesse momento de desamparo.
A MORTE COMO CONSOLO – Um Céu ESTRELADO
RITUAL DE DESPEDIDA
FLORES
ROUPA? CADA DETALHE BEM CUIDADO!
ESCREVE UM DIÁRIO…para quem? Para a mãe? Para Anne? Para si próprio?
A pomba mãe…A pomba da PAZ? A pomba da liberdade?
RELATA A VISITA DO POMBO E QUE DECIDE LIBERTÁ-LO. ANNE? A POMBA?
Ele deita para a morte
Ouve barulho…delírios?
Ela vem buscá-lo…os dois se libertam e saem daquela casa/túmulo.
FINAL:
CASA ABERTA… AREJADA….PARA QUEM?
A FILHA FICA COM O LEGADO DA VIDA…SENTA NA CADEIRA DELES…É A PRÓXIMA?
(Música de fundo): Impromptu Opus 90 n.3
Em um texto de Affonso Romano de Sant’Anna, Aprendizagem do amor pesco o seguinte poema:
ARTE FINAL
Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
Não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
Se aplica a escrever com o corpo
O que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
E outra o ato
Quem toma uma por outra
Confunde
[1] Comentário do filme, apresentado no dia 29/11/2013. Curitiba PR.
[2] Psicanalista. Membro associado e fundador do GPC. Membro associado da SBPSP.