Comentário sobre o filme “A Pele que Habito” (Andreas Z. Linhares)

 

Este trabalho é um comentário, um olhar, um exercício psicanalítico sobre o filme “A pele que habito” (“La piel que habito”) de Pedro Almodóvar, apresentado em 2011, no “Encontro de Psicanálise e Cultura”.

  1. “Almodóvar”

Pedro Almodóvar é cineasta espanhol, nascido em 1949 no pequeno povoado espanhol de Calzada de Calatrava (Comunidade de Castilla-La Mancha), que em 2004 possuía apenas 4600 habitantes. Ele foi funcionário de companhia telefônica, trabalhou como cartunista, ator de teatro e cantor de banda de rock, nunca estudou em escola de cinema. Foi o primeiro cineasta espanhol a ser indicado ao Oscar e é um dos mais premiados cineastas da história do cinema: dois Oscar, dois globo de ouro, quatro BAFTA (Academia Britânica de Artes Cinematográficas e Televisivas), três prêmios do festival de Cannes e seis prêmios Goya.

Seus filmes mais conhecidos são:

Os filmes de Almodóvar não são filmes convencionais, eles procuram expor o que normalmente não fica exposto. Abordam questões consideradas pelo senso comum como estranhas ou exóticas. Pode-se dizer que os filmes de Almodovar abordam o inconsciente, ou seja, o que está escondido, reprimido, negado; e o primitivo – as possibilidades mais selvagens, instintivas do ser humano. E ao fazê-lo através da representação – da obra artística – e não da atuação real, permite a sua elaboração. Assim, podemos considerar este cineasta como pertencente ao seleto grupo de artistas que pelo seu trabalho ampliam através da estética o conhecimento que o ser humano pode ter de si mesmo: a sua condição humana, sua violência, sua crueldade, sua dificuldade para situar-se no mundo, a dificuldade em lidar com suas emoções, com seus pensamentos, com o outro – com suas relações afetivas. O ser humano pode se observar como se estivesse diante de um espelho. Não é à toa, então, que Pedro Almodovar é considerado por muitos como um cineasta polêmico, inclusive na tradicional sociedade espanhola. Os fenômenos além do senso comum, além do pré-conceito, ainda despertam estranheza, quando não violência, mesmo no século XXI.

O artista realiza, ao criar um objeto real (pode ser um quadro, uma música, um filme) uma forma que expõe o que podemos considerar como uma pré-concepção ou pré-pensamento. Ao assistir  uma obra de arte com estas características termos uma vivência de riqueza, pois nos proporciona dar-se conta de algo, que aprimora as possibilidades do perceber e do sentir. A arte não confirma o que já sabemos, ou do que já temos forma, mas desperta para uma nova forma, um novo saber, uma outra elaboração. Neste sentido ela vai além do real, do convencional.

  1. “A pele”

A pele e o sistema nervoso advêm do mesmo tecido embrionário: o ectoderma. Ou seja, pele e o tecido neuronal tem origem biológica comum. Embriologicamente podemos considerar que a pele é a superfície do cérebro. Tem dupla função proteger, conter, mas também permitir o contato, o movimento.

“Sistema Nervoso”, psicanaliticamente leia-se “Mente”, é o responsável por nossa vida de relação. Grande parte da nossa vida é a nossa vida de relação.

A pele demonstra com facilidade os estados emocionais: palidez, rubor, sudorese (associados com o medo, pavor, vergonha, ansiedade, etc). Assim pele e mente, coloquialmente, podem ser sinônimos, como diz o dito popular: “Eu não gostaria de estar na sua pele”, como quem diz que não gostaria de estar vivendo os conflitos o que a outra pessoa está vivendo, não gostaria de ter que lidar com o que outro está tendo que lidar.

Então um título para o filme também poderia ser “A mente que habito”, pois vemos a presença de “mentalidades” e seus desdobramentos em cada personagem, configurando, inclusive, o seu destino.

A pele também demarca um limite, um contorno, uma condição de contenção, que separa os indivíduos, e que ao mesmo tempo oferece uma superfície e o contato.

Há um dito famoso de Freud, no seu livro “O Ego e o Id”, capítulo 2: “O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície (no original alemão: “Oberflächenwesen”), mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície (“Oberflache”)[2].

A partir da superfície, a partir do contato pode passar ou não a existir a consciência de uma “experiência”, ou seja pode passar a existir a noção de um antes e um depois, a superfície se expande, ganha uma outra dimensão: profundidade, tridimensionalidade. A consciência de uma experiência que é factual e emocional.

  1. “A pele que habito”

“A pele que habito” está sendo considerada como uma obra prima de Almodóvar, tanto pela temática abordada, como nos recursos fílmicos de fotografia e de roteiro, conquistando constantemente a atenção de quem assiste o filme com cenas surpreendentes e bem construídas. Ele foi inspirado no livro “Tarântula” de Thierry Jonquet, e também no filme “Olhos sem face” de Georges Franju (1960).

Pode-se dizer que Almodóvar apresenta a paixão que o ser humano tem pelo amor, e como isto pode cegá-lo na percepção dos próprios limites. O desejo torna os que são por ele tocados em fantasmas, sombras, espectros, deformações, mesmo que belas. Para que o desejo se realize ela deve destruir tudo o que o limita. O filme conta a história de alguém que sobreviveu, apesar de inescrupulosamente marcado, à violência do desejo.

Diz o próprio Almodóvar sobre o seu filme:

“Há processo irreversíveis, caminhos sem volta, jornadas apenas de ida. “A pele que habito” conta a história de um destes processos. O protagonista trafega por um destes caminhos contra a sua vontade, é forçado violentamente a construir um percurso do qual ele não pode retornar. Sua história kafkiana é o resultado de uma sentença proferida por um júri feita de apenas uma pessoa, seu pior inimigo. O veredito, assim, tem a forma de uma vingança extrema.”

A história do filme acontece em Toledo, município da mesma província (Castilla-La Mancha) que a cidade natal de Almodóvar. A protagonista do filme é Vera, interpretada por Elena Anaya, que na verdade um dia foi um rapaz, Vicente, que foi raptado a mando de Robert Ledgard, um homem de meia idade, cirurgião plástico, atormentado pelo acidente e suicídio da esposa, pelos distúrbios e morte da filha Norma. Vicente, supostamente, teve uma relação sexual com a filha de Ledgard, o que, supostamente, desencadeou nela um surto psicótico (catatonia e delírios). Vicente após ser submetido ao cárcere e à privação (desamparo) por Ledgard, é também submetido involuntariamente à cirurgia de mudança de sexo – vaginoplastia, a uma nova pele, a um corpo feminino através da cirurgia plástica e de hormônios, e passa a ter um novo nome, um nome feminino, Vera, que ironicamente significa “verdade”, uma verdade não verdadeira, mas que lhe é imposta.

Como Vicente sobrevive, se é que sobrevive, na pele e nas formas de  Vera? Poderá habitar esta pele?

O filme é a apresentação e a elaboração desta questão. Sobrevive-se às mentiras impostas com aparência de verdade?

Vicente é um adolescente, alguém que ainda não encontrou o seu espaço e está à procura dele, sem ter noção das implicações dos seus atos e conseqüências. Ao ter contato com a filha de Ledgard, parece não se dar conta da condição dela, apresentando uma forma pueril de lidar com a situação. Expectativas idealizadas e um certo descompromisso permeiam o seu viver. Vicente vive “na pele de um adolescente”. E por azar, diante de uma circunstância, com determinada pessoa, pagou caro por isso. Vicente, na sua “inocência”, encontrou um monstro.

Ledgard, é um homem proativo, podemos dizer que é um homem de ação, muito capaz de atuar, porém pouco capaz de refletir, de elaborar. Ele reage frente aos acontecimentos, não os elabora, não vive a experiência emocional, reage às emoções, de modo que não é possível para ele se aproximar de fato das pessoas, ele “opera” sobre as pessoas, não interage, não sintoniza com elas, impõe uma forma, impõe o seu entendimento. Ele procura formatar as pessoas, dentro do que ele considera que seja a melhor forma, muitas vezes as pessoas não tem como perceber ou como se defender disso e são inibidas ou humilhadas, ou simplesmente enlouquecem, ou se matam, oficializando, de certa forma uma morte que já antecedeu. Nesse ponto podemos dizer que Ledgard cria o horror. E sob essa ótica este filme de Almodávar é um filme de horror. Ledgard não reflete sobre o que ele se dispõe a fazer, o que ele vai fazer já está estabelecido, ele apenas reflete como realizar o seu fazer da melhor forma, assim, é prisioneiro de sua própria competência. Esta sua “competência” encobre a sua estupidez. Não há como deixar de lembrar de Édipo e sua “competente” e maldita ascensão ao trono de Tebas.

Ledgard incapaz de se aproximar de pessoas dentro da forma própria de cada um, se apaixona e aprisiona a “pessoa” que ele forma, através dos atos cirúrgicos, dos hormônios que ele administra e das roupas que fornece à sua criação chamada Vera. A administração é doce escondendo os hormônios no suco de laranja, ou procurando encantar com a beleza e com ópio. Ledgard, desconsidera, desrespeita, procura fazer desaparecer Vicente. Porém mesmo com as transformações sofridas Vera ainda é Vicente. Ledgard então só está seguro ao relacionar-se com a imagem de Vera, o que consegue através da tela ampla que coloca em seu quarto, em tamanho natural que apresenta a ele a imagem de Vera, que lhe provoca o deleite e o desejo. O que a presença de Vera não consegue sustentar, pois ao se aproximar de Vera, aparece também Vicente, que Ledgard odeia.

Vera então percebe que só irá sobreviver ao transformar-se na projeção de Ledgard. Torna-se uma aparição em beleza, em cumplicidade, no conluio com a mentira. Assim ela ganha a sua saída do calabouço. Triste paradoxo: deformar-se para poder ser verdadeiro.

Ao expor em uma conferência sobre transplante de rosto Ledgard profere:

“O rosto nos identifica. Para as vítimas de um incêndio, salvar suas vidas não é o bastante, precisam de um rosto, ainda que seja o rosto de um morto. Um rosto com feições para poder gesticular. Participei de três dos nove transplantes de rosto que aconteceram no mundo e lhes asseguro que foram as experiências mais emocionantes da minha vida (por um momento ao falar em emoção ele parece se desconcertar). Bem, para uma massa disforme adquirir traços que darão expressão devemos moldar os músculos, articulando a musculatura facial com suas terminações nervosas. ” Constata-se aí a negação da identidade como realidade psíquica. A identidade é confundida com aparência, com a expressão. Não se faz a distinção entre aparência e essência, entre verdade e mentira. O que é verdadeiro é o que tem aparência.

Contrasta esta atitude da que Vicente, na pele de Vera, na sua jornada de reencontro de si mesmo, busca com ajuda da ioga e da arte: não confundir a forma com o conteúdo. O reencontro com este mundo interno, através da respiração, “eu respiro”, (lembra de Freud?: “o ego é antes de mais nada um ego corporal”!)

Um comentário sobre a mãe de Ledgard (Marília). Quando ela pergunta ao filho o que fará com Vera e ele responde que não sabe, ela diz: “Você terá que matá-la ou senão ela se matará, ou te matará. As histórias se repetem.” Ao mesmo tempo revela a sabedoria e a crueldade da mãe, percebemos amalgamados nela a loucura e uma condição de se preocupar. As suas entranhas são loucas, como ela mesmo diz – o pathos da paixão.

  1. A arte 

Vicente, tendo que habitar sob a pele de Vera procura formas de elaborar ou de conter a sua situação. Uma situação que é sua, mas que na verdade foi imposta a ele. Ele se aproxima da ioga e da arte.

No filme aparecem os trabalhos da escultora Louise Burgeois que apresentam o tema da criação e da deformação, da expansão e do aprisionamento. Borgeois foi uma escultora francesa, das mais importantes do século XX, recentemente falecida. Ela esteve muito próxima da psicanálise, fez análise pessoal por muito tempo e teve uma importante exposição de sua obra no Museu Freud, em Londres. Ela teve a condição de sintonizar o produto de seu trabalho com experiências emocionais de sua vida. Acessou o poder da arte, a arte não como “equação simbólica” (tradução), mas como representação simbólica (transcriação).

Outra “citação” que aparece é o livro “Escapada” (“run away) da escritora canadense Elizabeth Munro, que trata das vicissitudes da vida afetiva e a dificuldade de abandonar uma relação mesmo que insatisfatória.

  1. Rastros, rostos e orifícios

Ao assistir o filme algumas vezes, fui construindo um modelo, que me parece sustentar a aproximação com os elementos abordados: A analogia é com “rastros”, “rostos” e “orifícios”:

Rastros são marcas que são deixadas pelo caminho, no ambiente, na própria pessoa ou nos outros.

O rosto é a cara, é o que é disponibilizado para interagir com os outros e com as situações. É a face. É “mostrar a cara”.

Orifícios demarcam espaços e travessias.

A questão estaria em como encontrar a fluência entre os diferentes espaços que habitamos, que são demarcados interna e externamente (orifícios, esfíncteres). Até que ponto conseguimos “criar” um rosto que efetivamente se relaciona com o espaço vivido, ao mesmo tempo que levamos marcas (rastros) da experiências passadas.

Ledgard não percebia espaços, não respeitava espaços, invadia a cena, deformava os espaços e assim criava a loucura. Vicente encontrou e passou a investigar uma forma de lidar com o espaço “Vera” – criar um rosto para lidar com um rastro até se libertar (passar pelo orifício).

  1. Ester Bick, Donald Meltzer e Didier Anzieu

Esther Bick (1901- Polônia -1983 – Londres), terapeuta de crianças, ficou conhecida por criar o “método de observação de bebês”. Em 1968, apresentou uma publicação com o titulo: “A experiência da pele nas relações iniciais de objeto”.

Ela observou que nos estágios iniciais a criança falha em desenvolver um sentido de pele contenedora (delimitadora de um espaço interno). O bebe teria nesta fase a experiência de desfazer-se em pedaços, ou de dissolver-se como um líquido que vasa sem forma. E no sentido de sentir-se integrado, conectado e contido pode realizar movimentos musculares e vocais. O bebe desenvolveria um sentido de integração ao aderir, em fantasia, à superfície de objetos, dando margem a uma forma de mimetismo que Ester Bick chamou de identificação adesiva, nesta fase não ocorreria movimentos de introjeção e projeção, pois não há um interno. Esta adesão aos objetos ou pessoas forma uma segunda pele, que contrabalança a sensação de vazamento. A mãe contém a criança ao abraçá-la. Assim o que primeiro estabilizaria o ego não seria o bom objeto, como descrito por Melanie Klein, mas a percepção de uma superfície delimitadora, contenedora. Este conceito de identificação adesiva também apareceu nos trabalhos do psicanalista Donald Meltzer. Estas descrições ajudaram muito em certas descrições do autismo.

O conceito de “ego pele” do psicanalista francês Didier Anzieu (1974) também usa a pele como superfície contenedora, não só na criança, mas no adulto e até em grupos.. O ego pele protegeria o sujeito de seus impulsos endógenos, enquanto o “ego pensante” protegeria o ego da de ser inundado por pensamentos e pelas percepções e permitiria a continuidade entre os pensamentos.

Idéia de bion continente –contido engloba estas características adicionado ao conceito de função alfa.

  1. Wilde

Encerro, citando um poema de Oscar Wilde , que aponta algo que podemos descrever como “masoquismo humano”: “cada homem mata o que ama” (“Each man kills the things he loves.”)

Este podema foi musicado e tem a interpretação de Jeanne Maureau [embedyt] https://www.youtube.com/watch?v=ZrBkBoz0_Hw[/embedyt]

“The Ballad of Reading Gaol”.

“…Oscar Wilde

Yet each man kills the thing he loves,
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!

Some kill their love when they are young,
And some when they are old;
Some strangle with the hands of Lust,
Some with the hands of Gold:
The kindest use a knife, because
The dead so soon grow cold.

Some love too little, some too long,
Some sell, and others buy;
Some do the deed with many tears,
And some without a sigh:
For each man kills the thing he loves,
Yet each man does not die.

He does not die a death of shame
On a day of dark disgrace,
Nor have a noose about his neck,
Nor a cloth upon his face,
Nor drop feet foremost through the floor
Into an empty space.”

[1] Psicanalista, membro fundador e efetivo GPC, membro efetivo SBPRP.

[2] Nota de rodapé introduzida por Freud na edição inglesa: “the ego is ultimately derived from bodily sensations, chiefly from those springing from the surface of the body. It may thus be regarded as a mental projection of the surface of the body, besides, as we have seen above, representing the

superficies of the mental apparatus’’

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