Filme “A Origem”= Inception
de Christopher Nolan
SEM LAMENTO – DE VOLTA A REALIDADE
Comentário[1] : Cleuza Mara Lourenço Perrini[2]
Desde o momento que saí do cinema, tocada pelo filme, A origem, me tomei de coragem para comentá-lo aqui, nesse evento que o nosso Núcleo promove: Encontros de Psicanálise e Cultura.
Vi-me invadida pelo que esse filme sugere ser, a meu ver, a experiência vivida em psicanálise.
Pensei que assim poderia focar minha visão desse filme instigante, mesmo sabedora que poderia estar fazendo uma anti-propaganda da experiência psicanalítica:
Não o falar da psicanálise,
ou do estudar psicanálise,
mas do viver psicanálise.
Mesmo assim, ainda com este propósito de correr esse risco, estou aqui para partilhar com vocês essa empreitada. E esse filme favorece para pensarmos essa experiência, após todos aqui terem vivido essa experiência ao viver o filme.
Bion disse sobre a psicanálise que: “Se não for parecido com a vida, não é psicanálise”.
O que esse filme pode ser parecido com a vida, portanto com psicanálise, se se trata de manipular sonhos, MANIPULAR IDÉIAS? De mudar o sentido da vida?
A frase a respeito disso no filme diz:
“Uma idéia é como um vírus. Resistente. Altamente contagiosa. E…a menor semente de uma idéia pode crescer para definir ou destruir você, como por exemplo: seu mundo não é real.”
Alguns comentários a respeito do filme sugerem a dor que é viver, ou como estou propondo nessas reflexões, a dor que é viver a vida, e que é, portanto, viver psicanálise:
Emoções que coletei de pessoas após o Filme :
Que escuro!
Confuso, difícil de acompanhar,
muitas vezes deu vontade de desistir,
Pura Pira! Fantástico!
Não é o que eu imaginava!
Vou suportar? Vou desistir? Será que isso vai mudar?
Complexo!
Provocou desconforto, cansaço, ameaça, admiração, e a mim provocou uma mobilização e estou aqui!
Esses diversos comentários que colhi, alguns vividos por mim, vão na esteira do que:
O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem
Alguns preferem viver na ilusão, morrer, portanto, como nossa personagem Mal, que não bastou os momentos de ilusão (necessário para suportamos a dura realidade da vida), preferiu se “atirar de corpo e alma” na ilusão, literalmente.
Eles sonhavam com uma vida ideal, que para Freud, A recuperação do sonho, não o delírio, é possível com a recuperação do ideal de ego, em detrimento do ego-ideal.
Nosso Dom Cobb está nessa empreitada.
O que ele precisa rever, transformar?:
Há quem sustente que a única coisa possível de ser mudada na vida, não é o futuro (com planos), nem o presente, em andamento, mas o passado.
A psicanálise é manipulação do passado? O que muda?
O que transforma e expande é o nosso olhar sobre ele.
A meu ver é isso que o filme me convidou a ver.
Ele é todo sonho, como a psicanálise,
e com isso sofre as mesmas condensações, deslocamentos, influências dos restos diurnos, necessidades vividas pelo corpo, que Freud tão bem em 1900, revolucionou a vida acadêmica, pessoal e cotidiana, de todos os tempos, com “A interpretação dos Sonhos”.
Meu Dream Work desse filme< Algumas idéias ligadas a isso, e por onde divaguei e que partilho com vocês agora:
O que é real, o que é sonho? Se os sentimentos estão confundidos (fundidos) não dá para ligá-los, integrá-los…
Essas podem ser as impressões de um bebê ao nascer?
O desconhecido?
O desamparo?
A vida intra útero o fez acreditar-se onipotente? Completo? Se alimenta sem esforço, com a crença de que produz o próprio alimento que come?
Assim, fazendo essa correlação mãe-bebê:
A mãe do nossa personagem não aparece no filme. A voz que se ouve através do telefone celular (célula mãe?) é da repreensão e do anúncio de que está roubando seus filhos (já que ele não vai voltar!). É sua mãe, sua sogra? Não importa aqui. Importa que
não tem nome, não tem registro interno.
Quais foram as primeiras relações objetais introjetivas que Cobb viveu? Essas só são possíveis, quando, como Freud disse, se for possível viver o luto. O sentimento expresso no filme, não é de luto, é de culpa. Ele reapresenta com a esposa o sentimento não elaborado com a mãe? Ele a “matou”? Ela o frustrou e assim não suportando o real, se enveredou por um caminho delirante, sem o encontro com o pai?
Será que o Fischer não é o deslocamento do nosso Cobb? Quem estava carente de identificação com o pai? Ariadne diz a certa altura:
“Conforme vamos mais fundo em Fischer, vamos mais fundo em você.”
E é na função de pai, que o faz acordar e lutar para retomar a realidade. E assim fazer luto da mulher, e da mãe idealizada, para ir de encontro ao pai.
E é esse pai (sogro? Que lhe ensinou a navegar pelas mentes das pessoas) e lhe convida: “Volte a realidade, Dom”, que lhe apresenta a Ariadne, arquiteta (da alma?), colega, analista/mãe? Que o diretor, intuitivamente(?), não a coloca como parceira amorosa/erótica. Quem é Ariadne na mitologia grega:
Conforme a mitologia Teseu, um jovem her�i ateniense, sabendo que a sua cidade deveria pagar a Creta um tributo anual, sete rapazes e sete mo�as, para serem entregues ao insaci�vel Minotauro que se alimentava de carne humana, solicitou ser inclu�do entre eles. Em Creta, encontrando-se com Ariadne, a filha do rei Minos, recebeu dela um novelo que deveria desenrolar ao entrar no labirinto, onde o Minotauro vivia encerrado, para encontrar a sa�da. Teseu adentrou o labirinto, matou o Minotauro e, com a ajuda do fio que desenrolara, encontrou o caminho de volta.
E o nosso Cobb precisa de alguém equipado para tratar dos seus labirintos da vida. Será Ariadne? Sabe que sua situação é complexa e a convida a desenhar labirintos. Não serve os que ela os apresenta de início. Somente o labirinto círculo, redondo é que lhe satisfaz. Redondo, por associação me remete a seio, e penso ser esse o seu labirinto a ser trilhado.
Isso me fez lembrar de uma entrevista com a artista plástica, idosa e ainda em atividade, Tomie Othake:
Círculo é feliz, né? Eu não acredita no feliz sempre, sabe? Então faz pintura tensa com círculo para mostrar isso.”
Círculo é tenso! É o que o filme nos mostra!
Ariadne o acompanha,
análise é nada mais que acompanhamento, ela é um peão, soldada (seu amuleto) daquele jogo de xadrez, que é a sua vida.
Os peões são os servos. O analista é um servo: servi-dor
O peões funcionam como soldados. Os soldados podem ser importantes peças para fazer pressão, e podem até ser uma das peças principais no xeque-mate.
Cobb ainda não está nessa vida. O nascimento do corpo não é o nascimento da vida mental, da vida psíquica. Ele é um pião que roda em torno de si mesmo, alienado, autista. Para começar esse amuleto é da esposa morta, não o dele, qual seria seu amuleto?
Está ainda em construção.
Análise é isso, acompanhamento.
Ariadne tem fé, o analista que é apaixonado pela psicanálise também tem. O analista não é o Rei, nem a Rainha, nem o cavalo, nem a torre do jogo de xadrez. Somos apenas soldados que acompanhamos nas batalhas, nos diversos andares onde se encontram, lá no fundo, escondido nossas fixações, projeções, nossa lembranças, terrores sem nome.
“Ela diz:
Vc projetou isso tudo? Ele diz: Tivemos tempo.”
Construíram sonhos em cima de nuvens, sem alicerce? Construíram mentiras e já não sabiam mais o que era verdade e o que era mentira.
A guisa de curiosidade existe, uma pesquisa sobre mentira que diz que basta você repetir três vezes uma mentira, que a pessoa passa a acreditar ser uma verdade.
Continuando nessa empreitada, por onde encaminhei meu Dream Work (e com certeza existem outros que poderemos conversar depois),
podemos pensar que a tarefa final de inserção de um pensamento na mente de Fischer, que era para este dividir seu império,
com o objetivo de não haver monopólio na administração da energia, podemos analisar e pensar que pode ser:
suportar o outro, sair do mono para a dupla e assim criar e suportar o terceiro, a cria, o fruto da dupla?
Suportar o sabermos imperfeitos, mortais, limitados. Sabedores que é essa a única herança que temos certeza de termos herdado.
O que é real, o que é sonho. Freud também nos presenteou com essa reflexão dolorosa: Os dois princípios do funcionamento mental: o princípio do prazer e o princípio da realidade.
No prazer, no sonho Cobb não estaria com seus filhos reais, ele começou a se dar conta disso. Não poderia encará-los de frente e suportar saber seus destinos, suportar seu crescimento, saber para onde vão, para onde se destinam seu olhar.
O filho lhe confidencia, no final, quando ele resolve encarar (en-carar, olhar de frente) a realidade:
-“ Estou construindo uma casa no penhasco, papai!
Ah! Quantos riscos é viver! Você agüenta isso meu pai? O filho olha o pai, o pai olha o filho. Seguir em frente, sem lamento.
Mas para isso Cobb precisa encontrar Saito: Voltar atrás em seu passado, que para a psicanálise só nos é importante quando esse passado está presente.
Olhar para trás: Cobb volta ao limbo, atrás de Saito.
Quem é Saito, é Cobb no futuro, velho sem ter podido viver sua juventude, sua vida?
Há um ditado chinês que diz que: “Os deuses até podem lhe mostrar a porta, mas somente cabe a você entrar”. Ele decide entrar na vida. E é assim que começa o filme e que termina.
O diálogo é assim: (e se vocês perceberam é diferente do início do filme)
Saito: Você veio me matar? (Ou veio convidá-lo para a vida)
Estou esperando alguém.
Cobb: Alguém de um sonho meio esquecido.
Saito: Nós dois éramos jovens
Cobb: Cheio de ressentimento.
Saito: Sou um homem velho, aguardando a morte sozinho.
Cobb: Voltei para buscar você, para lembrá-lo de uma coisa. Uma coisa que um dia já soube: Que este mundo não é real.
Saito: Para me convencer a honrar meu acordo.
Cobb: Para dar um voto de confiança.
Volte
Seremos jovens juntos novamente
Volte comigo
Picasso disse que “Leva-se muito tempo para se ser jovem”.
E QUANTO AO NOME do filme: INCEPTION. Até o prefixo IN corrobora para essa viagem ao interior, ao
começo, nascimento, criação, origem, concepção, arrancada, que é a experiência psicanalítica.
E a MÚSICA que vem como o sinal da volta a realidade?: É o sinal do retorno, uma despedida, um encontro? Despedida do passado, sem lamentos! De um passado que presentifica através, não de saudades (que é o luto elaborado), mas de um passado que desnorteia, confunde, enlouquece.
Non, Je Ne Regrette Rien (Tradução) Não, não lamento nada
Não! Nada de nada…
Não! Eu não lamento nada…
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal – isso tudo me é igual!
Não, nada de nada…
Não! Eu não lamento nada…
Está pago, varrido, esquecido
Não me importa o passado! (2)
Com minhas lembranças
Acendi o fogo (3)
Minhas mágoas, meus prazeres
Não preciso mais deles!
Varridos os amores
E todos os seus “tremolos” (4)
Varridos para sempre
Recomeço do zero.
Não! Nada de nada…
Não! Não lamento nada…!
Nem o bem que me fizeram
Nem o mal, isso tudo me é bem igual!
Não! Nada de nada…
Não! Não lamento nada…
Pois, minha vida, pois, minhas alegrias
Hoje, começam com você!
Começa com você
Quem é esse: Você
Dentro do que eu propus a nós hoje: É o
O apresentar-se a Você mesmo?
Que Bion disse tão apropriadamente:
“Pouquíssimas pessoas pensam que é importante ser apresentado a si mesmo; no entanto, um parceiro de quem o paciente jamais poderá se livrar, enquanto estiver vivo, é ele mesmo” (1992)
[1] Apresentado no Encontro de Psicanálise e Cultura do NPC em maio de 2011.
[2] Psicanalista. Membro associado e fundador do GPC. Membro associado da SBPSP.