A FRATERNIDADE É VERMELHA”, DE KRZYSTOF KIESLOWSKI
Grupo Psicanalítico de Curitiba
Encontro de Psicanálise e Cultura: Cinema e Psicanálise
“A fraternidade é vermelha”, de Krzystof Kieslowski[1]
Vera Marieta Fischer[2]
“Ser amado no sofrimento” tem valor insubstituível.
Andre Green (2012)
Introdução:
O filme A Fraternidade é Vermelha é o terceiro filme de uma trilogia de Krzysztof Kieslowski, produzido em 1994, drama, que aborda com suas cores, o ideário da revolução francesa. Este filme, polonês, francês e suíço, trata do ideal da fraternidade. Estrelado por Irène Jacob (Valentine) e Jean-Louis Trintignant (juiz-Joseph Kern). Nele observamos o papel do acaso nas transformações humanas, a solidão, a amizade, a fraternidade e as imperfeições humanas. Nesta obra de arte e poesia que é o cinema de KK, não precisamos entender certas coisas, apenas sentir. São as sensações provocadas no expectador e os sentimentos que ligam os três filmes da trilogia; não apenas a sua história.
Sobre o filme:
Valentine é uma jovem modelo que vive em Genebra. Certo dia, ao voltar para casa ao anoitecer atropela uma cadela pastora alemã. Preocupada, sai em busca de seu dono, cujo endereço estava anotado na coleira. Assim conhece o homem que mudará a sua vida: um juiz aposentado que passa os dias espionando as conversas telefônicas de seus vizinhos através de uma escuta ilegal. É o inicio de uma história de redenção, compaixão e sobre a perda de comunicação
entre os homens.
Por traz deste aparentemente estranho comportamento do juiz, está o enigma de um homem cujo motivo principal, vital, é tomar posse da intimidade daquelas pessoas e acompanhar passo a passo o desenrolar de seu destino. Ele vive solitário, somente acompanhado pela cadela Rita, e mesmo dela neste momento se mostra desistente.
Em estado de solidão e falta de contato afetivo, vivendo uma existência frustrada, isolada e sem esperança. Ao se relacionar com Valentine, (uma moça que está em busca de uma parceria amorosa e comprometida pelos seus sentimentos de solidariedade e fraternidade), oferece aos expectadores um espetáculo de transformação que essas duas mentes ao se aproximar são capazes de realizar.
Ambos se transformam. O juiz passa a considerar o ser humano, além de interessante, alguém capaz de manter vínculos confiáveis e que a vida pode valer à pena, desde que tenha alguém a quem possa dedicar uma palavra, um olhar e obter um retorno amoroso. Valentine passa a considerar que precisa olhar para as próprias necessidades e desejos.
A aversão que a princípio sente pelo juiz se transforma e a surpreende. Aprende com ele, ou através dele a refletir sobre as motivações de suas próprias atitudes, e a perceber que vem privilegiando o fazer sobre o ser. Pergunta ao juiz: se eu só pudesse fazer algo, ele responde: você pode. Seja.
O juiz, voltado para dentro de si, não reconhece no ambiente exterior, pessoas como dignas de respeito e consideração. De certa forma o seu olhar para dentro vai se tornando parcial e distorcido, permanecendo vinculadas a experiências traumáticas passadas não acreditando possível transformá-las. Impossível um processo de cicatrização, uma vez que mantém avivada a ferida, reiterada e compulsivamente.
Nas suas “escutas” a conversas alheias, ouve sobre traição, maldade, destruição de famílias, decepções e amores não correspondidos, o que incide e potencializa sua própria dor. A relação amorosa que viveu de características melancólicas, o mantém em estado de mágoa e ressentimento.
Seu elo afetivo é mantido pela cadela Rita, que representa ainda seu Objeto Transicional e que lhe conduz a Valentine. Quando abdica dela e a cede à Valentine parece desistente. Rita está grávida. Ela contém a Vida; uma esperança. Rita se recupera, cuidada por Valentine e volta espontaneamente para a casa do juiz. Há vínculos.
Quando Valentine percebe que o juiz passa seu tempo com escutas clandestinas o critica asperamente: “isto é ilegal, tenho pena de você!” Ele por sua vez a questiona: “e você, qual é a sua motivação para atender uma cadela atropelada e ferida? Seria sua bondade? Sua consciência de culpa? Poderia dormir à noite se não o fizesse? Então me denuncie, vamos!”…
Winnicott descreve a necessidade do paciente de ser odiado antes mesmo de ser amado.
“Gostaria de acrescentar que, em certas fases de certas análises, o ódio do analista é realmente buscado pelo paciente. O que se faz necessário aqui é o ódio objetivo. Se o paciente busca um ódio objetivo ou justificado ele deve ser capaz de obtê-lo, de outra forma não sentirá que pode alcançar o amor objetivo.” (O ódio na contratransferência, p. 283).
Valentine se encaminha para denunciá-lo, mas desiste ao ver a cena: “em uma casa vizinha, sopa quente na mesa, uma menina ouvindo ao telefone o pai falando com um amante. A mãe dizendo que já chamará o marido… Repreende a filha por ficar brincando com o telefone.” Valentine se afasta.
A atriz Irène Jacob como Valentine, relata em uma entrevista: O tema do filme foi fundamental para mim; eu tinha mais da personagem do que sequer poderia imaginar. Uma violência no enfrentamento de seus desafios, nos super alongamentos da ginástica, ultrapassando o limite da dor. Na vida real, identificada com a criança da escuta clandestina e com aspectos de violência, aqueles que não podem ser declarados, e que então omite.
Valentine mantinha para com o namorado patologicamente ciumento, uma postura de submissão; sorridente, apaixonada, mas impedida de ser ela própria. Embora estivesse ligada a moda, exposta em outdoors, valorizada pela mídia, sua vida afetiva permanecia empobrecida. As palavras do juiz a fazem pensar, ela analisa…
Um dos aspectos em comum nestas duas personagens do filme é a submissão. Valentine, se mantém cuidando do seu irmão, frágil, que desde os 15 anos passa a usar drogas, ao saber que seu pai biológico não era o marido da mãe. Com o namorado ciumento mantém um relacionamento de sofrimento e desencontro. O juiz aposentado vive uma submissão a sua história afetiva, com a qual ficou melancolicamente ligado. Sofreu um abandono, e a perda definitiva da mulher amada.
Valentine e o juiz mantêm grandes diferenças entre si; ele busca arrogantemente a verdade; ela considera que as pessoas têm direito a ter segredos. Para Valentine, as pessoas não são más, só são fracas. Ela tem um sorriso cativante, uma sensibilidade que faz jus ao slogan do outdoor relacionado à propaganda de chicletes: O sabor refrescante da vida. É uma mulher jovem, correta, bonita, elegante, sensível e expressiva.
Tem interesse genuíno e afetuoso para com o animal e com os seres vivos que a cercam. Comprometida com o trabalho, interessada nos seres humanos. No entanto não observa ao seu redor, outras possibilidades, e neste ponto ela e o juiz têm algo em comum. Ele se manteve impedido de viver a própria vida, assombrado por fantasmas que o ligam ao passado. Permaneceu melancólico. Agora ele pode se aperceber disto; fraternalmente compartilha esta vivência com Valentine.
Sua melancolia se transforma em depressão, tristeza, elaboração. Confessa publicamente então sua culpa por espionar, por viver a vida dos outros… Vai readquirindo a própria vida, estimulado por Valentine, e lentamente sua voz e seu semblante pesado vai se modificando.
O filme conta com metáforas preciosas. O que foi e o que poderia ter sido; o que pode ser modificado e reconstruído.
Personagens se confundem. É um filme construído em montagens paralelas. Há um moço vizinho de Valentine, jovem advogado Auguste, que poderia ter sido o juiz na sua juventude. Tem a mesma formação profissional. Acontecem situações idênticas com os dois, a ponto de igualarmos ambos como a mesma pessoa, num outro tempo. Na vida há várias possibilidades… O acaso e seu papel.
Christopher Bollas (1992) desenvolve um tema diferenciando fado de destino. Diz ele: “se fado surge das palavras dos deuses, destino é então um caminho pré-ordenado que o homem pode preencher.”
Ocorre uma catástrofe, um acidente no mar, onde Valentine e a “nova versão” do juiz aposentado, o jovem juiz Auguste, seu vizinho, foram dois dos sete sobreviventes de mais de mil mortos. Isto os aproxima. Uma vivência de horror, um naufrágio, uma tempestade no mar. Uma alusão à vida de Valentine e do juiz, contendo muitas tristezas e desesperanças.
Elas se iniciam em uma condição de catástrofe. Atropelamento. Valentine o atropela de sua vida… O juiz aposentado também atropela Valentine interpelando e questionando sua vida, seus valores.
Nascem sete cachorrinhos de Rita. Um deles o juiz reserva para Valentine, a pedido dela. O mais vivaz e forte. No início, náufragos de esperanças, mas no transcorrer dos encontros, alimentados por sentimentos de amizade fraterna que inclui comprometimento, respeito, compreensão, admiração.
Comentários:
Freud, vol. VII da Standard Edition (1905) p. 307 em: Tratamento psíquico ou mental refere:
“ As vicissitudes da vida muitas vezes curam as doenças através da experiência de uma grande alegria, através da satisfação da necessidade ou da concretização de desejos”.
Winnicott, em Da Pediatria à Psicanálise, p.381. (1954) comenta:
Em outras palavras, a psicose está intimamente relacionada à saúde, na qual incontáveis situações de fracasso ambiental são congeladas, sendo, porém atingidas e descongeladas pelos vários “healing phenomena” da vida cotidiana, como amizades, cuidados especiais dispensados durante uma doença física, poesia, etc..
O “enamoramento” e as experiências estéticas também se constituem em healing phenomena. Opróprio filme em si é uma obra de arte e envolvimento. Como obra de arte está recheada de surpresas, indagações, paradigmas e non sense.
Sobre o conceito de sanidade, podemos questionar: Este juiz aposentado seria considerado são? Psicótico? Esquizóide? Borderline? E Valentine, firmemente ancorada na realidade objetiva, seria uma pessoa considerada sã?
Os fenômenos curativos, nesta apresentação do filme, como seriam em um caso clínico, se colocam em marcha, pela presença de um ambiente facilitador, e então há a retomada de um viver criativo. O verdadeiro self, então cindido, protegido pelo falso self como defesa organizada, pode surgir das experiências de vínculos que vão se fortalecendo. Os sonhos e as memórias vão fazendo frente àquelas experiências traumáticas.
O juiz sonha um sonho para Valentine. Comunica a ela que a vê acordando pela manhã, com 40 ou 50 anos, tendo alguém querido sorrindo ao seu lado… E estava feliz.
Em entrevista Irène Jacob comenta que o genial Kieslowski pergunta qual nome ela gostaria de ter sido chamada quando era criança. “Valentine”, responde. E assim ele a chamou no filme. Também rodou as cenas em Genebra, sua terra natal. Os atores testemunham que o papel mais difícil de executar numa peça ou filme é aquele em que o personagem tem muito a ver com sua própria identidade.
O juiz tem “memórias” do tempo e oriundas da sensorialidade e de dos cuidados que recebeu, e que constituem a raiz da saúde e do viver criativo, resgatadas neste encontro fraterno e amoroso. Estabelece com Valentine uma relação de mutualidade, e neste clima o que se transmite são os sentimentos de segurança e confiança.
O momento em que ele mostra a Valentine os filhotes recém-nascidos de Rita é precedido de uma paisagem magnificamente iluminada do sol se pondo entre as montanhas. Corresponde a uma impressão reveladora de intimidade e troca.
Convidado por Valentine vai assistir ao desfile de moda que ela protagoniza. Sai da sua condição reclusa, amarga e entra em contato com a beleza, o prazer, e rememora que antes ele fazia este percurso em seu automóvel e acompanhava estes acontecimentos sociais com alegria.
Estas vivências se referem, como cita Winnicott, também a identificação primária, que pode possibilitar o viver criativo e o gesto espontâneo. A vida se enriquece e pode colaborar para cicatrizar feridas e descongelar fracassos de traumas anteriores.
E o que dizer da cor vermelha? Ela aparece em muitos momentos do filme. Do outdoor com a foto de Valentine, do carro de seu vizinho advogado, da fachada do café na rua, da saia de Valentine na academia, nos assentos do teatro, do fundo da foto do ensaio fotográfico e dos muitos objetos do filme. Insistentemente a cor vermelha presente.
E o que dizer do número 7 recorrente no filme? Sete cachorrinhos nascendo de Rita, 7 sobreviventes entre centenas de náufragos? Seria simbólico das mudanças que ocorrem a cada 7 dias, meses e anos?
A trilogia das cores conta com outros dois filmes: A Liberdade é Azul e A Igualdade é Branca. Uma alusão às cores da bandeira francesa, e seus ideais. Neste período quando o filme foi feito, estava presente o desejo da união do povo Europeu, e ele aponta a desunião, com suas rivalidades, batalhas e desumanização. Os três filmes realizados quase que simultaneamente por Kieslowski contém, cada um deles, uma alusão a gestação e a esperança de vida. Seria uma esperança também de uma Europa Unida?
Kieslowski aproxima o juiz de Valentine e observamos uma relação entre eles de amor e ódio, portanto uma relação verdadeira. (Winnicott em O Ódio na Contra-transferência). Somente em uma relação verdadeira pode germinar o olhar que integra; o olhar fraterno.
Referências:
Abram, J. A linguagem de Winnicott. Dicionário das Palavras e expressões Utilizadas por D. Winnicott Revinter. 2000.
Bollas, C. (1989) A Pulsão do Destino In: Forças do Destino, p.47 Imago
Green, A. (2012) Sobre a Construção na Obra de Freud. Livro Anual de Psicanálise 2014 Tomo XXVIII-2 p. 331 Escuta.
Winnicott, D.W. (1954) O ódio na contratransferência In: Winnicott, Da Pediatria a Psicanálise. p.277. Imago.
Winnicott, D.W. (1954) Aspectos Clínicos e Metapsicológicos da regressão em um setting psicanalítico In: Winnicott, Da pediatria à Psicanálise p.381. Imago
Outeiral, J. O. O conceito de individuo são o viver criativo e os fenômenos curativos (Healing phenomena).
Vera Marieta Fischer
E-mail: fischer.veramarieta@gmail.com
[1] Trabalho apresentado no dia 20 de outubro, quinta-feira, Curitiba.
[2] Psicanalista, Membro efetivo do GPC, Membro Associado da SBPRJ, Membro da FEBRAPSI e da IPA.