“……………estou cansado de ser vilipendiado, incompreendido e descartado, quem diz que me entende, nunca quis saber….. E Clarisse está trancada no banheiro, e faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete, deitada no canto, seus tornozelos sangram, e A DOR É MENOR DO QUE PARECE, QUANDO ELA SE CORTA ELA SE ESQUECE….. A violência que existe contra todas as meninas e mulheres….. Clarisse está trancada no seu quarto com seus livros, seus discos e seu cansaço. Clarisse só tem 14 anos ….”
Clarisse – Legião Urbana
Estou propondo pensarmos sobre o que está acontecendo no mundo atual que nossos adolescentes estão sofrendo tanto. Tanto o “cutting” como esse número assustador de suicídios que já é visto como um problema de saúde pública. Segundo dados da OMS mais de 800 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos e o Brasil é o oitavo país do mundo em número de suicídios. Nessa série da Netflix , “Thirteen Reasons Why”, uma menina de 17 anos se mata de uma forma tão violenta nunca vista antes no cinema.
Vou levantar algumas questões, que na verdade são hipóteses para que pensemos neste assunto.
- A família do séc. XXI mudou. Ela não existe mais somente como a conhecíamos antes: pai, mãe e irmãos. Existem outros arranjos.
Com a entrada da mulher no mercado de trabalho, a liberação feminina, muitos casamentos deixaram de ser indissolúveis. Casais ficam juntos enquanto se amam e depois formam novos pares. Ela é constituída de pai que mora em outra casa, com outros filhos e outra mulher, de mãe que mora com outro pai e com outros irmãos, tem os irmãos que são do pai e da mãe, os que são só do pai, ou só da mãe. Tem os pais que são separados, mas que são amigos e até frequentam uns as casas dos outros, formando assim uma grande família, e tem aqueles que são brigados e que a criança não pode contar o que se passa na casa do pai para a mãe e vice-versa. Tem as crianças que são filhas de pais homossexuais e, portanto tem duas mães, ou dois pais em casa. Tem a questão da guarda- compartilhada: a criança passa metade da semana na casa do pai, e a outra metade na casa da mãe.
Quase como consequência disso vemos a colocação das crianças desde muito cedo, em creches e hoteizinhos para bebês. Vão com quatro meses e às vezes antes disso para o hotelzinho onde só é buscada depois do banho e do jantar. Isto é um fato, as mães cada vez mais estão trabalhando fora e acham mais seguro deixar os seus filhos nestes lugares especializados. A relação mãe-bebê fica prejudicada. A criança que naturalmente começa a estabelecer um vínculo com o mundo através da mãe, que necessita do apaziguamento do colo da mãe, dos olhos da mãe que são o seu primeiro espelho, vai sofrer com isso. A sensação de estranhamento aos 9 meses, a segurança que a rotina de casa dá ao bebê, tudo isso fica alterado.
Por outro lado, quando são um pouco maiores, devido aos espaços pequenos em que moram convivem muito mais com os adultos, participam das conversas, ficam mais envolvidos também com os problemas.
O mundo está cada vez mais competitivo e as crianças têm aulas e mais aulas o dia todo, com horários pré-determinados. Desde o maternal começam a aprender uma língua estrangeira, estão cada vez tendo mais aulas particulares, esportes, pintura, alemão, inglês, dança balé, violão, música, etc.
- Estamos há pouco mais de 20 anos do ano 2000, ou seja, da expansão da internet no mundo. Essa foi uma revolução tão grande ou maior que a revolução industrial. Ainda não temos tempo para olhar com certo distanciamento quais foram as mudanças ocasionadas, mas com certeza elas foram muito grandes e muito importantes.
Hoje em dia estamos conectados ao mundo externo o tempo todo. As crianças desde que nascem assistem desenhos no celular de seus pais, escutam músicas, veem filminhos e sabem que se passarem o dedinho na tela, acontecem coisas interessantes. Crianças de nove, dez anos, ou antes mesmo disso, já usam I Phone, ou seja, mandam e recebem mensagens para os amigos o tempo todo, mostram o espetáculo de balé que fizeram ontem, as fotos importantes, enfim um resumo da sua vida está lá. Quando estão sozinhos no seu quarto, estão postando mensagens, conversando com seu grupo de “amigos” no WhatsApp, o que estão sentindo, o que estão pensando, recebem comentários sobre isso, tem uma grande rede de “amigos” que os seguem virtualmente. Postam suas fotos e seus sentimentos, suas músicas preferidas, filmes feitos por eles, escrevem “fanfics”. *
Mas essas postagens na sua maioria são de um mundo ideal, todos muito felizes, as fotos todas passadas por filtro, aliás chamado “beauty”, grandes acontecimentos. Tudo exposto numa total falta de intimidade. É a sociedade dos “Selfies”, da aparência. São pseudo-relacionamentos, onde a pessoa posta e fica esperando quantas curtidas vai receber. O valor de si mesmo é medido pelo número de “likes”. É a não dissolução do narcisismo, é o aprisionamento na sensorialidade, a procura incessante pelo olhar da mãe. Nos “likes” procuram encontrar o que não encontraram no olhar das mães.
Essas são as “Novas Crianças” como diz Vincenzo Bonaminio profundo estudioso da obra de Winnicott. E nós, como analistas, como vamos atender esses “Novos Pacientes?” Existe o risco do analista parecer um velho despertador analógico em uma era digital. Os adolescentes, principalmente, trazem à análise, distúrbios de sua própria subjetividade, do significado da existência, do seu sentido de ser – da “possibilidade de ser”, como diria Wright (1988). Trazem à análise problemas psicológicos do viver, do estilo de vida e de psicopatologiasque são diferentes dos chamados “pacientes clássicos”, para os quais a técnica psicanalítica foi moldada. Julia Kristeva, em seu livro “As Novas Doenças da Alma”, enfatiza as novas formas de descontentamento que estão chegando ao consultório do analista, e que elas são caracterizadas por dificuldades de “representação”. Kristeva questiona se o espaço psíquico, esse “quarto escuro” da nossa identidade, onde os desenganos do viver estão refletidos simultaneamente com o prazer e a liberdade, estaria à beira do desaparecimento.
As crianças não têm que se haver com o vazio, com um tempo sem nada para fazer, com a frustração do tédio, conviver com o silencio, escutar a si mesmas, e poder dar espaço para o criar. Para o simbolizar, para imaginar e fantasiar.
“A função simbólica seria destacada como promovedora da possibilidade do desaprisionamento do espelho”. (Luciano M. Godoy – 2018)
No tempo dos nossos pais eles recebiam visitas, o relacionamento era presencial. No nosso tempo já havia o telefone, as pessoas se identificavam com a voz, mas hoje, o adolescente se relaciona com “perfis”, ele não sabe se são verdadeiros, quem são, se é homem ou mulher. É toda uma realidade virtual. O “Perfil” é um objeto em quem projeta algo e de quem introjeta algo, mas que se configura aparentemente como uma “representação”. No entanto, talvez pudesse ser configurada como uma fuga da realidade.
No artigo, “Os sacrifícios, Traços do Nada”, Véronique Dufour e Serge Lesourd, contam que uma paciente de 14 anos que eles nomeiam de Clara, internada em período integral, após tentativa de suicídio chega na sala de psicodrama individual e fala: “Eu não tenha nada a representar.” Trata-se de uma menina vestida com moletom grande, com mangas compridas demais, cobrindo as mãos, escondida atrás dos seus cabelos longos, que deixa aparecer alguns machucados no seu pulso. Depois de algum tempo ela fala da relação conflituosa com uma mãe invasiva demais e depressiva demais. Ela se impedia de falar de sua própria tristeza e demonstrava através de camisetas com frases, que nunca tinha conseguido ter uma relação verdadeira com sua mãe. Através de sua atitude silenciosa, sempre dizendo que não tinha nada para dizer ou para representar, ela demonstrava através de suas roupas ou sua maneira de se apresentar, o seu vazio interior. Ela não tinha nada para dizer, esse nada era o lugar subjetivo que ela ocupa numa história onde ela não pode encontrar existência nem junto à mãe que se encontrava ela mesma vazia e nem na organização significante da família. Ela não encontrou o olhar da mãe como um espelho. O olhar vazio da mãe depressiva não deixou com que ela pudesse constituir uma imagem dela mesma. As automutilações são então para Clara uma tentativa de simbolização passando pela realidade de seu corpo. Os cortes não se inscrevem no corpo como um gesto ritual, mas como uma tentativa imaginária de limitar o seu sofrimento de inexistência, como uma tentativa de se fazer existir.
As automutilações são uma tentativa de se inscrever dentro da realidade do corpo uma separação que não pode existir naquela época do espelho. O sofrimento que o sujeito se infringe a si mesmo tem um duplo senso. Por um lado ele é a expressão do seu sofrimento de não ter sido reconhecido pelo outro no tempo da construção egoica, de outro lado ele permite graças ao sentimento de dor física, apagar por um tempo o sofrimento da inexistência dentro da realidade, onde o sujeito não consegue encontrar uma representação de si mesmo no mundo.
Pacientes podem levar tempo para apresentar ao analista seu corpo ferido, machucado violentamente por abusos concretos ou imaginários, mas que causaram cortes em seu desenvolvimento mental. É preciso tempo para aquecer áreas congeladas pelo medo, fortalecendo a coragem para tocar nelas.
É interessante distinguir desta tentativa de existência através da dor do corpo, as outras formas de marcas no corpo dos adolescentes atuais. O piercing, por exemplo, tem uma outra relação com o corpo. O furo que é feito para colocar o enfeite é sempre feito numa zona erógena (olho, boca, orelha, umbigo, seios, partes genitais) e, portanto ele tem um significado de despertar um olhar libidinoso do outro. Ele se inscreve na lógica das pulsões parciais da sexualidade infantil. O piercing infringe ao corpo uma ferida real, sublinhada pela joia que enfeita e induz a uma excitação permanente da zona erógena por um estímulo mecânico.
Uma ultima distinção deve ser feita entre o piercing e a automutilação. Essas últimas são cortes na superfície colocando no ato, na realidade, um corte não feito simbolicamente. As automutilações podem significar um retorno ao plano concreto do que não pode ser simbolizado e elas evocam sempre o estado de construção da separação subjetiva entre o sujeito e o outro. Os piercings representam o colocar no concreto a pulsionalidade e a erogeneidade do corpo. Eles testemunham uma relação que já existiu entre o eu e o outro, de uma relação sexualizada mesmo que nesta sexualização restem traços de uma pulsionalidade infantil. Ao contrário das automutilações, os piercings se inscrevem numa área relacional, o que implica na separação e na individuação do sujeito.
As tatuagens por outro lado, se distinguem das automutilações, são os traços simbólicos que significam os acontecimentos importantes da vida do sujeito, inscritos para sempre no livro de sua carne.
Caso Clínico:
Vou trazer um pequeno fragmento de um caso clínico para ilustrar este trabalho.
O paciente tem 14 anos e vou chamá-lo de André. A mãe aos 18 anos ficou grávida. Foi um relacionamento muito tumultuado, muitas separações, até que se separaram definitivamente quando o paciente tinha oito meses. A mãe foi obrigada a ir trabalhar e deixar André numa creche desde os primeiros meses. Um ano depois conheceu o atual marido, que assumiu o papel de pai. O pai biológico, nunca visitava o filho. Quando o paciente contava com 9 anos, procuraram o pai biológico que desistiu do pátrio poder e o pai atual o adotou.
Um ano antes do início da análise o paciente começou a procurar o pai biológico pela internet. Numa ocasião foram à cidade onde ele mora e o paciente combinou um encontro. Voltou meio decepcionado.
Quando os pais me procuraram, André estava muito mal no colégio, notas baixas, ficava fechado no quarto, com muitas crises de depressão, muitas mudanças de humor, e se cortava. Já havia se cortado no braço, e escrevia palavras, como por exemplo, o nome da namorada. A mãe fica apavorada com estes cortes.
Na primeira sessão, chega um rapazinho, adolescente, bonito, de bonezinho virado para trás e diz que anda sempre assim porque detesta o seu cabelo. Gostei dele desde o primeiro momento porque parecia muito carente e gostava de conversar. Parecia que estava ansiando por essa oportunidade. Diz que sempre quis fazer terapia, que quer ser psicólogo e que há muito tempo não está bem. Passou seis meses muito mal, fechado no quarto, sem falar com ninguém e com muita vontade de morrer. Ele não sabe o porquê. Me conta que procurou muito o pai biológico, falava com ele pela internet, e nesta sessão chorou muito.
Sua canção preferida era essa: Welcome To My Life
Do you ever feel like breaking down?
Do you ever feel out of place?
Like somehow you just don’t belong
And no one understands you
Do you ever want to run away?
Do you lock yourself in your room?
With the radio on turned up so loud
That no one hears you screaming
No you don’t know what it’s like
When nothing feels alright
You don’t know what it’s like
To be like me
To be hurt, to feel lost
To be left out in the dark
To be kicked when you’re down
To feel like you’ve been pushed around
To be on the edge of breaking down
And no one is there to save you
No you don’t know what it’s like
Welcome to my life
Do you wanna be somebody else?
Are you sick of feeling so left out?
Are you desperate to find something more
Before your life is over
Are you stuck inside a world you hate?
Are you sick of everyone around?
With their big fake smiles and stupid lies
While deep inside you’re bleeding
No you don’t know what it’s like
When nothing feels alright
You don’t know what it’s like
To be like me
To be hurt, to feel lost
To be left out in the dark
To be kicked when you’re down
To feel like you’ve been pushed around
To be on the edge of breaking down
And no one is there to save you
No you don’t know what it’s like
Welcome to my life
Tradução livre:
Bem Vindo a minha vida
Você já se sentiu como estivesse desmoronando?
Você já se sentiu deslocado?
Como se você não se encaixasse
E ninguém te entendesse?
Você já quis fugir?
Você se tranca em seu quarto?
Com o rádio ligado tão alto
Que ninguém te ouve gritar
Não você não sabe como é
Quando nada parece certo
Você não sabe como é
Ser como eu
Ser machucado, sentir-se perdido
Ser deixado no escuro
Ser chutado quando você está caído
Sentir-se maltratado
Estar à beira de entrar em colapso
E ninguém está lá para te salvar
Não você não sabe como é
Bem-vindo à minha vida
Você quer ser outra pessoa?
Você está cansado de se sentir excluído?
Você está desesperado para encontrar algo mais
Antes de sua vida acabar?
Você está preso em um mundo que você odeia?
Você está cansado de todos a volta?
Com grandes falsos sorrisos e mentiras estúpidas
Enquanto lá dentro você está sangrando
Não você não sabe como é
Quando nada parece certo
Você não sabe como é
Ser como eu
Ser machucado, sentir-se perdido
Ser deixado no escuro
Ser chutado quando você está caído
Sentir-se maltratado
Estar à beira de entrar em colapso
E ninguém está lá para te salvar
Não você não sabe como é
Bem-vindo à minha vida
Depois de algum tempo de análise, percebo que ele está se sentindo acolhido (encontra o meu olhar) e me conta que tinha um blog na internet onde escrevia muitas coisas.
- Kill-me
- Estou perdendo a luta contra mim mesmo.
- Estou sem apetite, sem vontade de comer, não consigo ver a minha feia.
- Estou com saudades, tenho vontade de morrer.
- Estou perdendo a luta contra mim mesmo.
- Me acho horrível, não gosto dessa horrorozidade.
- Não gosto do meu cabelo, me acho feio.
- Não vejo sentido nesta vida.
- Kill-me.
- Muitas vezes escreve; Why?
Fiz esse recorte apenas para exemplificar o que pode se passar na mente de um adolescente, que necessitava urgentemente de psicoterapia!
Bibliografia:
– Bonaminio, Vincenzo –“Nas Margens de Mundos Infinitos” – Ed. Imago – 2010.
– Drieu, Didier – Automutilations, Traumatophilie et Enjeux Transgénerationnels à l’Adolescence. RFP – Adolescence – 2004,22,2,311-323.
– Dufour, Véronique et Lesourd, Serge – Les Scarifications, Traces Du Rien – RFP – Adolescence, 2004,22,2,273-279.
– Godoy, Luciano Marcondes – Espelhos, Reflexos, Reflexões – Ed. Appris – Curitiba, Pr. 2017,
– Maître, Jacques – L’Automutilation comme Retour du Religueux . RFP – Adolescence,2004,22,2,365-389.
– Miranda, Marina Ramalho – Corpo Ferido: O Cutting (ato de se cortar) no cenário bulímico – 2008
– Wallbach, Edna Romano – A criança do Sec. XXI – Ed. Juruá – 2013.
– Legião Urbana – “Clarisse”
– Simple Plan – “Wellcome to my Life”